terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

“Pavarotti” de penas


Forçado ao repouso, procuro cumprir com algum rigor a abstinência ao trabalho e às conversas longas; a dieta alimentar é sensaborona, mas o que mais me cansa, é estar de costas direitas, à espera que o tempo passe. A inércia nunca fez parte dos meus hábitos, mas como a ordem veio de cima, do médico que me assistiu nos HUC, faço-lhe a vontade, na esperança, como disse, de continuar por cá por mais uns tempos – sempre acontecem coisas novas, se não houver sabedoria, que haja conhecimento!
Na aldeia onde me “refugiei”, o tempo parece mais vagaroso, por isso deixo o olhar perder-se no horizonte, visto do meu quintal: mimosas “perna-longas” de um lado, casas velhas desabitadas à minha frente, do outro lado, lá longe, um monte coberto de pinheiros, e atrás de mim a sombra da casa resguarda-me do calor primaveril.
No relvado, um melro anda aos saltinhos e em silêncio (e se é bonito o seu cantar!); faço um pequeno gesto, levanta voo e esconde-se na selva que invadiu o quintal do vizinho. Às mimosas, juntaram-se as silvas e arbustos que não conheço, cobrindo por completo as oliveiras.
O melro deve ter o ninho nesta mata impenetrável…
Os pesticidas que os meus conterrâneos usam nos ataques às pragas e ervas daninhas -uma boa infusão de urtigas resolvia, não é “mestre” Zeferino? - afugentou os pintassilgos que, noutros tempos, festejavam a Primavera com acordes de uma sinfonia, em homenagem à mãe Natureza.
Uma vez, aqui perto, descobri um ninho destes passarinhos… Espreitei e vi três ovinhos de cor creme, pintalgados de cinzento. Dei tempo ao tempo e acompanhei a eclosão da ninhada.
Quando o vizinho (habituado a ir “aos ninhos” desde miúdo, coisa que nunca fiz…) entendeu que tinha chegado a hora da transferência, fez-se a mudança para uma gaiola, na esperança de que os pais, segundo ele, os alimentassem; estes, coitados, não gostaram que tivéssemos interferido na educação dos filhotes, por isso manifestaram-se de forma “ruidosa”, sem se aproximarem da prisão, o que me deixou preocupado e mais, do que isso, bastante incomodado.
Nem uma hora durou o martírio, porque, com paciência e jeito, devolvi os bebés à “casa” onde nasceram – felizmente sem consequências graves. Dias depois, a família estava junta nos ramos da oliveira.
Nesse dia, decidi que não voltaria a cercear a liberdade a nenhum animal que estivesse habituado à liberdade.
Para que a gaiola de grade brancas não ficasse vazia, comprei um canário de cor amarela – um autêntico tenor pela qualidade e pujança do canto!Agora, são dois os cantores que tenho na sala, cada um na sua gaiola.
O mais atrevido é jovem e irrequieto; nunca lhe dei nome de gente, o que não aconteceu com o “Pavarotti” que habita a gaiola do rés-do-chão – baptizado com propósito pela Acácia, à saída da loja da especialidade.
Um dia a Acácia decidiu que dois gatos não eram, de facto, a melhor companhia para o cantor de penas, ainda que este estivesse a salvo das arremetidas dos felinos, e pediu-me para o trazer para o meu "jardim de entrada".
As vidas do “Pavarotti” e do seu companheiro tenor eram tranquilas, pareciam “felizes” no cativeiro e as pessoas deliciavam-se com as “cantigas ao desafio”.
Depois a Acácia veio com uma novidade afiada na ponta da língua e quebrou em estilhaços o laço de cristal “Lalique” que prendia os sentimentos de ambos. Nessa hora, a sorte do “Pavarotti” ficou traçada: não voltaria à varanda do terceiro andar!
Agora canta só para mim.

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