terça-feira, 20 de outubro de 2009

O “canto do rouxinol”

Fim de tarde, o rio Alva corre manso a caminho do abraço que há-de trocar com o Mondego, perto de Penacova, e eu mantenho-me por ali, junto à ponte, tentando descobrir num dos ramos do salgueiro o rouxinol que me encanta com os seus trinados. Deve estar camuflado, o cantor, porque não lhe ponho a vista em cima, mas adivinho-lhe o colorido das penas, em tons de castanho.
Ainda era primavera, e nem imaginava que, tempos depois, a coberto da partilha da ideologia política, cruzava os passos com “outro rouxinol”, de carne e osso, alegre nas palavras e nos gestos, afoito nas ideias – um quase revolucionário para as gentes da “nossa” serra, direi eu.
Se encontrarem por aí um rapagão cinquentão, de mochila às costas, é ele, o “Rouxinol”, por momentos em descanso dos cliques a que obriga a máquina fotográfica, levando-a a copiar sorrisos, lágrimas, montes, vales, terras de pousio, riachos, ribeiras, o horizonte… e o resto que uma exposição pública há-de mostrar outro dia.
O “Rouxinol”é um artista e tem o “ninho” em Pomares, freguesia que o acolheu, na companhia da esposa, de braços abertos, a tempo de ser útil à comunidade após a reforma. E não foi de modas: vai de concorrer às últimas eleições, adiantando sonhos e uma vontade enorme de chegar ao Piódão, a partir de Pomares, por uma estrada digna e capaz de levar (e trazer...) as pessoas à serra com segurança.
É bom de ver que o “Rouxinol” queria (e quer!) fazer da sua freguesia uma espécie de entreposto turístico; gabei-lhe a ideia e acompanhei-o nos sonhos, sobretudo durante a mostra fotográfica que fez questão de inaugurar na companhia de largas dezenas de amigos na sua sede de campanha – coisa pouco vista, a nível de candidaturas, nas freguesias do meu concelho.
Contados os votos, o “Rouxinol” não obteve os suficientes para dar corpo às ideias que dançaram por entre as palavras de circunstância no “porta-a-porta” em Agroal, Porto Silvado, e nas restantes povoações que compõem a freguesia de Pomares. Mesmo assim, não perdeu o “pio” e diz que não abandona a ideia de ter o Piódão “mais perto”!
É de força, o António, “Rouxinol” de Pomares”!
Graças a homens de rija têmpera, sonhadores como o “Rouxinol”, nesta campanha eleitoral foi possível viajar por estradas com razoável piso, mais perto do céu, com os novos moinhos de vento no horizonte, a caminho da Fórnea e da Malhada Chã. O amigo João Luís, cicerone da serra, que conhece a palmo desde o tempo dos rallys, levou-me mais longe e fez-me subir mais alto, ao Monte do Culcurinho – 1250 metros de altitude! – para vista deslumbrante!
A capela da Nossa Senhora das Necessidades continua firme no cume; naquele dia, o sol beijava o altar, o frio era intenso, e foi no aconchego do resguardo da antecâmara da entrada que recordei (com dose dobrada de inveja…) os doidos que certa vez lançaram o desafio de ir com eles desfrutar o nascer o sol ao Culcurinho! Reconheço, de facto, que o “mundo visto dali”, é lindo!
Agora, sou eu o maluco, e se o meu cicerone habitual não estiver disposto a tanto, lanço o repto ao meu novo amigo António “Rouxinol” e à sua “Cannon” (?), com lentes de não sei quantos megapixéis, e havemos de “roubar” os tons do sol a crescer…a crescer…a crescer por detrás da “nossa” serra!
Cá por coisas, vou tomar nota de um”pormenor” para a viagem:
- Não esquecer de triplicar os agasalhos, incluindo a carapuça de lã.

sábado, 11 de julho de 2009

As saudades são como as cerejas


O Agrupamento de Escolas da Cordinha, agora que terminou o ano lectivo, tem menos movimento. Os alunos estão de férias, não há o “chilrear” das crianças a propagar-se à distância, mas nem por isso deixam de “marcar presença” por tudo quanto é sala, átrios, corredores e recreio – é assim que “vejo e sinto” a escola quando deambulo no espaço reservado à exposição dos trabalhos executados pelos jovens.
“Apeteceu-me” ter saudade quando manuseei as folhas A4, com arte nos textos, desenhos, e nas várias técnicas de colagens. Nesse tempo de visita, pouco mais de um quarto de hora, a nostalgia tomou conta da minha sensibilidade, a ponto de confundir este sentimento com outro, meio-irmão, conhecido por saudade; embora diferente, tem mais força do que a nostalgia (estou de acordo com Milan Kundera), e esta, que é a minha saudade, fez com que recuasse ao passado, à infância.
Uma das prerrogativas de quem guarda memórias é isso mesmo: poder ter saudade de qualquer coisa, de alguém, de um tempo. Se ouço um fado de Coimbra – um que seja! -tenho saudade das serenatas que, durante um ano lectivo, me libertavam do sono, noite após noite, porque tive a sorte de morar num apartamento paredes-meias com outro, onde havia uma república feminina – era por elas, as residentes do segundo andar, que os estudantes faziam trinar as cordas das guitarras e sobressair as vozes potentes, entoando melodias românticas: eles, “perdidamente apaixonados”; elas, “…bate, bate coração/ louco, louco de ilusão…”, quais Cinderelas, que o Paião havia de imortalizar anos mais tarde.
Algumas pessoas, como o Paião, deviam ser eternas, não pelas memórias que guardamos de si, mas “vivinhas da silva”, em carne e osso, para podermos, nós e as gerações seguintes, usufruir do seu talento. Agora, por exemplo, “apetece-me” ter saudade do Elvis Presley e da sua música Gospel com que enfeitei a minha juventude. O Elvis nunca deveria ter “entregue a alma ao Criador”, porque, depois dele, foi o vazio; apareceram cópias sem importância de maior, porque o “rei”, na verdade, era – e continua a ser – “único”!
Na semana que passou, foi a vez do divino Michael Jackson “abandonar o barco” sem um adeus! O choque foi brutal, até para mim que sou mais Elvis do que Michael, e muito mais Paião do que os outros dois.
Com a morte a ceifar vidas de pessoas imortais antes do “tempo”, fica um amargo na boca, misto de nostalgia e saudade, e não serão as estátuas de cera, os filmes, as fotografias, os temas musicais que deixaram para a posteridade e as estórias das suas vidas privadas que compensam a ausência definitiva dos génios…
-“Foi desta para melhor” – li algures, a propósito do Michael Jackson.
Como nada sabemos sobre o que acontece para lá da morte, pelo sim pelo não, o melhor é ter um certo estilo de fé, como esse de “ser melhor do que este (mundo) o sítio para onde vamos” – vamos mesmo?
Porque citei o Carlos Paião, “apetece-me”, também, ter saudades dele por razões que vão para além do talento do músico, letrista e intérprete. Por exemplo: ser adepto ferrenho/doente do Benfica, (eu também, mas nem tanto…); a outra, deveras importante, porque nos ligava uma certa amizade – e aos amigos, francamente, nunca se vira as costas sem mais nem menos – foi o que o Carlos fez, e isso deixou-me “chateado”…
…Já se sabe que as saudades, quando arrumadas num cestinho, são como as cerejas: atrás de umas, vêm outras.

sábado, 27 de junho de 2009

A dança da avozinha


A correspondência entre os amigos deixou de usar os correios para chegar ao destino, o espaço virtual é instantâneo na oferta, e é por essa via que vamos sabendo uns dos outros.
Simples e económico, mas sem o prazer do manejo da caneta sobre o papel, e para quem lê, a ânsia de receber das mãos do carteiro uma carta que seja, abri-la e ficar preso/a às palavras, há muito que deixou de ser hábito.
Felizmente há excepções, que confirmam a regra; a regra são os emails e os “SMS”, que vêm pelo ar e aterram no meu Toshiba a qualquer hora, muitas vezes sem nome no remetente, outras com endereços completamente desconhecidos. Felizmente, a Rosa (“Gita” para os amigos), que reside no meu sítio e a quem me liga uma saudável amizade, nunca se esquece de acrescentar o nome e o endereço…
Nos tempos de agora, é quase impossível recriar “ ao vivo” “O Carteiro de Pablo Neruda”, porque a poesia anda arredia dos amores, escritos a tinta e em maiúsculas, que tanto seduziam a bela Beatrice Russo; adiante – o melhor é ver o filme e deixar-se enamorar por ele, como o carteiro pela bela Beatrice…
Volto à Rosa, que faz questão de presentear os amigos com emails bem-humorados, textos e imagens de gargalhar, o que, convenhamos, têm efeito placebo nas tristezas. Além disso, esta amiga acrescenta introdução da sua lavra à correspondência que lhe chega de outras paragens, o que valoriza o conteúdo do que se lê ou vê, um pouco ao jeito do meu amigo alentejano, da Amareleja, que “embrulha” as anedotas com risos e afins, garantindo finais de boa disposição.
O vídeo que agora a Rosa me enviou, onde uma sexagenária (?) rechonchuda torce e retorce o corpo ao ritmo cadenciado de “uma música maluca”, é capaz de espantar a gente nova menos afoita às danças moderna As imagens, só por si, são um fartote de risos, mas se lhe juntarmos a introdução desenhada pela Rosa, como adiante se verá, o “espectáculo” fica completo, até para os mais sisudos.
Sabe-se como são as pessoas mais idosas, sobretudo as senhoras que vivem no campo, para quem o ideal seria “sol na eira e chuva no nabal”. A partir de uma certa idade, o corpo fica mais pesado, não responde ao chamamento da enxada, vêm os achaques, falar em pé de dança é remetê-las à saudade de quando eram moças, os tempos mudaram, os bailes mandados ao som da guitarra do ti ‘António Pereira pertencem ao passado…e por aí fora – a viagem é longa nas lembranças. Foi “tudo isso” que a imaginação da “Gita” transformou nas palavras que acompanham as imagens:
“Localizem-me esta MULHER!!!!!! Por favor!!!!!! Tragam-na p’ro Barril!!!!!! Please!!!!! Nunca mais se ouvia falar em médico de família, dói-me aqui, tenho que ir regar porque não chove, as couves nem crescem, porque não chove... as batatas....porque não chove!!!!!! CHIÇA!!!!!! Tragam-me esta MULHER!!!!!! Que animação! Do melhor”!

terça-feira, 23 de junho de 2009

"O Amigo do Povo"




O peso dos anos tem a importância e o valor do trajecto que percorremos. O carrego pode ser pesado se a vida foi madrasta, ou leve se a fortuna teve sorrisos de boa vizinhança. Em qualquer dos casos, a memória funciona como arquivo de todas as coisas, boas e más; por vezes, de forma voluntária, recordamos outros tempos, perto ou longe do momento presente, outras é o acaso que nos faz lembrar o passado. Casualmente, encontrei na mesa de um café um jornalinho que, confesso, não folheava desde os tempos em que ia à Missa, aos domingos. Chama-se O AMIGO DO POVO, é editado pela Diocese de Coimbra, e tem de vida noventa anos!
São duas folhas "A4", de conteúdo evangelizador, naturalmente, e é informativo quanto baste. Tinha (e tem!) uma secção que lia com enlevo: "Ao calor da fogueira" - diálogos simples e moralistas, como o da edição 4280, do dia 11 deste mês de Natal. De tanto querer saber (e nada sei!...) tornei-me agnóstico, mas este jornalinho transportou-me à infância na minha aldeia, ao padre Januário, às brincadeiras do pião e aos futebois no largo da escola, às reguadas da professora Georgina e aos seus preciosos ensinamentos, à primeira namoradinha, ao Peixoto (a quem sovei de raiva, certa tarde, por causa da Teresa que era miúda de alguma beleza e sorriso brejeiro), aos passarinhos presos nas armadilhas, aos mergulhos no rio, ao Américo Cigarrada (ai...os peixes que agarrava à mão, no "meu" rio, só para me satisfazer os desejos!...), à avó Virgínia, à mãe Natália...
Dezembro 2005

Amigos para sempre

Há um tempito zanguei-me por coisa pouca com o vizinho do terceiro esquerdo. Era chato porque o senhor cruzava-se comigo e eu ficava sem jeito: "olho para ele ou não, digo bom dia ou finjo que não o vejo"? Estas dúvidas atormentavam-me com frequência, ou com a frequência com que passávamos um pelo outro, para ser sincero. Então, resolvi fazer as pazes com o senhor Silva (é o último nome do meu vizinho...) e agora, pelo natal, desejei-lhe "boas festas", estendendo a mão. Retribuição da praxe, que agradeci. Simpático, este senhor Silva!... - Pronto, pensei, assim é que é bonito, os vizinhos não devem andar desavindos, ainda nos cruzamos em algum sítio público com mais pessoas por perto, e continuaria a ser chato alguém notar a indiferença mútua... Confesso que fui um pouco agressivo com ele no dia em que decidi virar-lhe as costas - até fiz por esquecer o seu nome próprio, com o intuito claro de o desconsiderar aos ouvidos de quem estava. Errei, dou a mão à palmatória da professora Georgina, que já morreu, por isso descanse em paz, por mim está perdoada - as reguadas nem sempre eram justas, mas o que lá vai, lá vai. Como se vê, tenho esta mania de esquecer e perdoar os arrufos, as injustiças, etc, etc... Entretanto, o senhor Silva candidatou-se ao lugar de presidente do condomínio do prédio que habitamos e não está de modas: organiza um comício junto à porta do elevador, no rés do chão, com a intenção de explicar aos restantes inquilinos as razões da sua candidatura (um ritual de todos os comícios, digo eu...) ! Ainda lhe zumbi ao ouvido que sem um "bebício" era difícil juntar as pessoas, o senhor Silva concordou e deu, de imediato, ordens à técnica da limpeza das escadas para comprar bifanas, "minis" e sumos sem gás. Como sou presidente do clube do bairro e tenho alguma influência (modéstia à parte) junto dos vizinhos do primeiro andar e não só, o senhor Silva, sem qualquer intenção de se aproveitar da minha posição social, é preciso que se diga, convidou-me para estar ao seu lado no dia da festança. E assim foi! Até usei da palavra para afiançar que a nossa desavença foi coisa de putos, hoje somos grandes amigos, enfim.... disse o que a ocasião pedia, do alto meu havano, num jeito, tipo democrata, eu é que sei, eu é que mando - essas coisas que sempre se dizem quando se tem um estatuto social como o meu! Agora é esperar pelo dia das eleições, que estão para breve.
Janeiro 2006

Pé de dança


Acordei na confusão de um sonho onde as personagens eram díspares entre si: havia soldados romanos trajados de capa e batina, estudantes disfarçados de camponeses, os políticos eram querubins e o povo anónimo, com a máscara de sempre, dançava embriagado pelo som da banda filarmónica; os músicos, não mais de uma vintena, vestiam com o rigor de um traje marcial. Eu, mero espectador num espaço de todo desconhecido, tinha a consciência de “estar em casa” e aprestava-me para entrar no baile com uma moçoila que, desde o início do sonho, me fazia negaças com o olhar. - A menina dança? – perguntei gentil, com o frenesi próprio da ocasião. Entretanto, despertei! A cena passava-se em Ulveira do Espital ou na cidade que agora se conhece? A que propósito surgia um sonho alegre, contagiante? Os sonhos têm explicação lógica ou enquadramento real? - Ah… o Carnaval, raciocinei – e tudo ficou mais claro, até os “disfarces”! Naquela noite, tinha privado com três “bruxinhas” e um Maio disfarçado em "duende". Não fora festança de cansar, mas deu para sorrir, rir e gargalhar durante uma hora bem contada. Portanto, tudo se resumiu a brincadeiras de ocasião. Os bares e cafés encerraram portas às duas da madrugada – ainda a noite começava a espreguiçar-se – e não houve tempo para mais. Por isso... sonho! A “minha” cidade tem noites assim, "curtas de pequenas que são" (o que contraria a vontade de a sentirmos vibrante e nada amorfa), deita-se cedo dia após dia, em qualquer altura do ano, e não há santo milagreiro que a salve desta desdita.
Já divaguei que baste – vou tentar voltar ao sono. Pode ser que ainda dê um pé de dança.
Março 2006

segunda-feira, 22 de junho de 2009

“Palavrões”



Seis horas no hospital à espera de uma consulta, são horas a mais, mas não havia volta a dar-lhe, e quem espera, desespera. Por vezes, quem espera tem um “bónus”, o meu foi uma consulta.
O médico que me recebe é simpático e deve ser muito competente; não apresento queixas, mesmo assim entendeu que o colesterol precisava de uma ajudinha para vir por aí abaixo, na escala dos valores que considera ideais para quem tem problemas cardíacos, como é o meu caso. Vai daí, alterou-me a medicação e foi explicando, tintim por tintim, como serão úteis as diversas substâncias que compõem os novos comprimidos, possivelmente minúsculos, como eram os anteriores.
Fixo a posologia, mas quando percorre caminhos enviesados para o meu entendimento, limito-me a ouvi-lo pronunciar “palavrões” do estilo: Rosuvastantina, Ezetimiba, Perindopril…! Continuo “sem fala”, mas se pergunta “Percebeu?”, quer que lhe responda com um sim, não, ou talvez, e eu sorrio, que é a melhor das respostas quando se é leigo no assunto. Acho que todos nós, os doentes, e mesmo aqueles que o não são, devemos responder sempre ao médico com um sorriso. O doutor não se obriga a grandes explicações, se dissermos “Não, não percebi patavina”, e se dissermos “Sim, senhor doutor, percebi”, ele sabe que estamos a mentir, mas fica-se por ali mesmo, pela nossa ignorância. Portanto, sorrir em tons de amarelo é uma boa resposta (se fosse verde, era sinal de que tínhamos percebido; vermelho, seria o mesmo que dizer “Troque isso por miúdos e numa linguagem que se perceba”).
Um sorriso, como se vê, é a salvação de quem está perante alguém que sabe mais do que nós sobre qualquer coisa, a não ser que estejamos numa sala de aula, onde o mestre tem por missão ensinar; aos alunos, só resta estar atento à matéria, nada de assim-assim no entendimento, como sucedeu há dias durante uma lição sobre gestão da floresta, que dá sempre jeito a profissionais e a ignorantes (como eu!). Quando a engenheira Tânia, da “CAULE”, falou da Pseudotsuga – um “palavrão” que em alguns casos assume grande porte, se o associarmos a uma espécie de “pinheiro” de jardim – fiquei a saber que é uma mentira apontar a resinosa como familiar do Pinus pinaster, o “nosso” pinheiro bravo”. Tem pinhas, sim senhor, mas isso não lhe confere qualquer parentesco!
Seis horas numa sala de espera, dão para imensa coisa: ler o jornal, partes de um livro, ouvir as conversas dos vizinhos, ou passear o olhar pelos rostos de quem está por ali… à espera. Aproveitei o tempo consoante o cansaço que proporciona a incómoda cadeira; se me concentrava na leitura, de quando em vez, ficava em alvoroço com uma voz de mulher que vinha do altifalante. Era timbrada, e os decibéis, acima da média para o local, preenchiam “violentamente” o espaço auditivo.
Ao meu lado, uma senhora, entrada na idade, “passava pelas brasas”. Tantas vezes se sentiu incomodada com as chamadas, do estilo “António Francisco Simões, sala cinco” (aquilo era rápido, questão de segundos!), entre tremores e um ressonar “simpático”, a dado momento, talvez por estar a meio de um sonho bonito, deu um salto na cadeira e soltou um sonoro desabafo:
- “Ai credo, porra que me assustei”!
Nessa altura estava eu preso à leitura das últimas sobre o “meu” Benfica, depois de ter mergulhado numa crónica do Miguel Esteves Cardoso.
- “Carlos Alberto Ramos, gabinete dois” – chegou a minha vez!
Eram três da tarde.

sábado, 13 de junho de 2009

O “estádio” do Artur



Aninhado no sopé do monte, o rectângulo não deve ultrapassar os cinquenta metros quadrados. Em cada canto, uma estaca delimita o espaço. E há duas estruturas de madeira erguidas ao alto, a “fazerem” de balizas, porque é de um “estádio” que se trata, na imaginação do pequeno Artur, quatro anos de gente…
Nota-se que o “ervado” merece cuidados técnicos, mas não há marcações, e o “penálti”, se o houver, é para cobrar mais ou menos a meia dúzia de passos da imaginária linha de baliza. Certamente, o Artur, o primo João, bastante mais crescido (vai nas treze primaveras), e o Paulo, pai do Artur, não se importam mesmo nada com as “faltas”; árbitro também não deve haver, por isso, vamos ao jogo!
A bola está à espera – já lá estava, sozinha e “triste”, quando a descobrimos no “estádio vazio”, meia escondida pela “relva” – faltam os atletas e o público, possivelmente reduzido à mãe do Artur, se os afazeres lá por casa estiverem de folga.
Convém que as duas equipas tenham número igual de jogadores; à hora do jogo, devem surgir mais uns quantos amigos e então sim: começa a partida!...
Talvez nada aconteça como imagino, e tudo não passe de uma brincadeira familiar, sempre se exercitam os músculos e o Artur dá asas ao sonho de chutar a bola num campo a sério, com balizas e tudo!...
Hoje, de manhã, li um excelente trabalho sobre o negócio das escolas de futebol, onde se realça o facto dos miúdos pagarem (os pais por eles…) determinada verba para aprenderem os truques do jogo; à tarde dei de caras com este “campinho”, quase à beira da estrada de quem vai de Vila Cova de Alva a caminho de Avô, um pouco antes da saída para Anceriz. À falta de estruturas desportivas por estas bandas, onde as crianças se entretenham nos tempos livres, a arte e o engenho de quem aproveitou determinado espaço e o adaptou a “campo de jogo” não podia ficar sem a devida nota…
O escrito sobre as escolas de futebol, a que tive acesso, deixa no ar uma questão pertinente: quem não tem disponibilidade económica, não pode ter um filho a aprender o abecedário da modalidade?
Uma bola feita a partir de uma meia, cheia de folhas de jornal, é memória dos mais antigos; o jogo acontecia onde muito bem calhava, as pastas da escola faziam de baliza, e gritava-se goooooooooolo com o mesmo entusiasmo com que se ouve nos grandes estádios! Nasceram grandes jogadores nessas partidinhas de fim de tarde ou durante o tempo de recreio na escola…
Desconheço se o menino Artur, que “treina” num campinho à porta de casa, procura imitar as fintas e remates do seu ídolo; se há admiração, por exemplo, pelo Cristiano Ronaldo, é bom que saiba, daqui a uns tempos, quais foram os princípios do seu “herói” na prática do jogo da bola.
Já agora, ainda lhe digo que o “grande” Eusébio chutava descalço durante as intermináveis partidas que tinham lugar na terra batida e poeirenta da Mafalala, em Moçambique, e nem por isso deixou de chegar onde chegou…
Que o jogo comece lá para as bandas de Anceriz, sem árbitro nem marcações no “relvado” – desde que a bola “pule e avance”, os sonhos são todos dele, do Artur, o dono “estádio”!
“Bora” lá, Artur, chuta-me essa bola, que o guarda-redes “estás de costas”!
Goooooooooolo!!!

Albertina e Dionídio


Para sempre – 50 cartas de amor de todos os tempos”, é uma pequena enciclopédia com mensagens, frases, reflexões e imenso romantismo. O filósofo Jean Jacques Rousseau dizia que elas, as cartas, “começam sem saber o que se vai dizer, e terminam sem saber o que se disse". Álvaro de Campos, foi mais longe e deixou para a posteridade outra frase célebre: “todas as cartas de amor são ridículas…”!
O livro reúne textos de várias personalidades, de Beethoven a Chopin, de Franz Kafka a Fernando Pessoa. Os homens não diferem muito nas questões do coração quando o descobrem apaixonado e, por vezes, retratam o sentimento de forma tão sublime quanto pueril…
Para lá das cartas trocadas pelos amantes, há estórias (de amor) cujos relatos nem sempre têm um final feliz: “Tristão e Isolda”, de autor desconhecido do século XII (?), ou “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, são disso exemplo. Felizmente, tal não aconteceu, em 1945, ao casal Albertina e Dionídio, residentes em Meda de Mouros, aqui bem perto.
A força da paixão dos jovens amantes levou de vencida as contrariedades ao muito bem querer com que enfeitaram os sonhos, como se conta ao correr da pena, surripiado o relato do livro “Meda de Mouros e as suas gentes”, de Salvador da Costa e Luís Castanheira.
Albertina de Jesus e Dionídio Pereira namoriscavam-se e disso não guardavam segredo. O entusiasmo do primeiro amor, naquele tempo, era capaz de quase tudo, excepto contrariar interesses familiares.
Entretanto, Eduardo, viúvo, industrial de panificação, bastante mais velho, entendeu alargar os “apetites apaixonados” e declarou-os à Albertina e aos pais, que se mostraram “sensíveis” aos seus interesses…
- Nunca! – terá dito a conversada do Dionídio.
Porém, a insistência foi tanta que a pobre rapariga, por respeito (ou medo?) aos progenitores, acedeu. Ela e o Eduardo, o viúvo, à socapa, foram comprar o enxoval, mas não se rodearam de grandes cuidados e a notícia não tardou em chegar ao conhecimento do Dionídio que, “…perdido de amor, adoeceu, ficou acamado, recusou alimentar-se e dizia à mãe que morreria se não lhe fossem buscar a Albertina”! A senhora, perante a dor do seu amado filho, implorou aos pais da Albertina que tivessem em conta o amor de ambos, mas de nada valeram as lágrimas, que certamente terá enxugado com uma das pontas do xaile negro com que se cobria. Conta-se, na estória, que a senhora, “com o espírito amargurado, caminhou em clamor pela rua acima…”.
Perante tamanha “safadeza”, dois amigos do apaixonado Dionídio convenceram-no a raptar a amada, e logo engendraram um plano, que passava pela ida da Albertina à fonte, ao anoitecer, onde havia de explicar-se, olhos nos olhos, ao seu Dionídio. Nada consta sobre os pormenores do “rapto”, mas sabe-se que ela deixou a rodilha e o cântaro na fonte e refugiou-se na casa de um dos mentores do acto, o Augusto Lopes.
Luís Pereira, pai da Albertina, não tardou em conhecer a verdadeira “tragédia” e foi em busca da filha, na companhia de dois irmãos desta. Chegados ao refúgio, vem a Albertina e, com lágrimas a rolarem pela face, corajosamente enfrenta os familiares, afiançando-lhes que só se casaria com o Dionídio. Conformados, pai e irmãos, regressaram a casa….
Algum tempo depois, realizou-se o casamento da Albertina e do Dionídio… e foram felizes para sempre!
Do viúvo Eduardo nada mais se sabe. Possivelmente, carpiu mágoas junto à ponte “romana” do Cadoiceiro, em Meda de Mouros…
Agora, aos noventa anos, a memória da dona Albertina já não é o que era. Se fosse, a estória viria inteira!

terça-feira, 12 de maio de 2009

Rosas de Outono

O frio deste Outono ainda não foi bastante para que os campos se cubram de um manto branco onde morrem os últimos botões das minhas roseiras.
Aprecio sobremaneira o tom vermelho-escuro das rosas que crescem no meu quintal no tempo próprio, não agora, que nascem tardias, quase a medo... não vá a geada uma noite destas reduzi-las à lembrança da Primavera, o que acontecerá mais cedo ou mais tarde.
Um dia destes trouxe do jardim uma dessas rosas de Outono com a intenção de a colocar num solitário, como sempre faço – um luxo a que me dedico com inusitado prazer. Dada a fragilidade das pétalas, coloquei-a com muito cuidado no banco do "pendura" e fiz-me à estrada sob chuva forte. Os pensamentos teriam pouco sentido porque concentrava a atenção no tráfego, apesar de pouco intenso.
Na "estrada real", próximo do "sítio do costume", disse de mim para mim: "com este tempo, não há rameira que aguente a espera de eventuais interessados na aquisição dos seus serviços"! Puro engano. Depois de uma curva, na berma da estrada, uma figura feminina, esguia, de mini-saia, acoitava-se sob um guarda-chuva. Do outro lado estava outra, sujeita ao mesmo desconforto. Travei suavemente, o carro continuou a marcha mais devagar, e, ao passar por aquela que estava estática junto à minha faixa de rodagem, cruzámos os olhares por breves segundos - tempo suficiente para outra decepção: "mais um que se limitou a olhar ", terá dito para com os seus botões.
Que "estórias" não teriam estas mulheres para contar, se lhes fosse pedida justificação para a entrega a profissão de riscos anunciados, morais e físicos? Creio que as carências económicas vinham à cabeça de uma lista com outros itens por demais conhecidos, mas pouco aceites pela sociedade, que usa o prazer mórbido da rotulagem depreciativa como elas o fazem com o corpo: de forma rotineira.
A mulher com quem cruzei olhares tinha o rosto gasto pelo peso dos anos e, naturalmente, dadas as circunstâncias climatéricas, não estaria com a melhor das disposições para se enfeitar com um sorriso; por isso, talvez não conseguisse atrair cavalheiros interessados no negócio do prazer. Então, como num escaparate, expunha o que de melhor tinha para o enlevo da vista: duas pernas roliças e elegantes para excitar a cobiça. Infelizmente, naquele dia, até o tempo fazia cara feia… Que ninguém me peça opinião sobre este modo de vida, porque, no meu jeito grave e solene, quando é caso disso, opinaria: sendo a prostituição uma realidade reconhecida como a profissão mais antiga da Humanidade (?), por que não obrigar estes agentes do sexo ao seu exercício no recato de quatro pareces e em condições de higiene e segurança? Dirão os eventuais leitores que os hábitos (não) fazem um monge, que isto é prática comum em qualquer parte do mundo, sempre assim foi e continuará a ser – é verdade, mesmo assim não altero o meu "sentido de voto".
Não se discute a "qualidade e a competência das intervenientes" e muito menos se fará a apologia do chamado sexo de luxo nesta croniqueta despretensiosa – sexo é sexo, seja ele praticado no requinte de um quarto de hotel, ou debaixo de um tecto de miríades de estrelas, ao ar livre. As condições de conforto, higiene e segurança, é que mudam - do pormenor do romantismo dos lençóis de seda a outros requintes a preceito, para que o negócio se assemelhe a um acto de amor.
Regresso à rosa da minha companhia, durante a viagem. Embora frágeis, as pétalas mantiveram-se harmoniosamente juntas.

"Um Almoço de Negócios em Sintra" - Gerrit Komrij

Terminei a leitura de um livro excelente, pela qualidade da escrita e das “estórias” que, no todo, retratam o povo que fomos num passado não muito longínquo. Apesar dos ventos que vão soprando algum progresso, estas cento e sessenta páginas de prosa ainda reflectem um pouco do povo que somos – tão actuais em certos casos e situações, que me revejo em algum lugar onde oito anos de distância pouco ou nada acrescentaram às imagens que o autor retratou com mestria.
"Um Almoço de Negócios em Sintra", "é um retrato em corpo inteiro de Portugal e dos portugueses…" à data da primeira edição; antes, já o autor deambulava por aí de olhos bem abertos, por isso não é de estranhar a sua perspicácia na análise de hábitos e costumes enraizados na vivência de um povo.
Gerrit Komrij, escritor, poeta, ensaísta e tradutor, holandês pelo nascimento, é "oliveirense" adoptivo. São da sua lavra as estórias reais que verteu para esta obra, editada e reeditada em 1999. Possivelmente, o livro está fora do circuito comercial, por isso não há intenção de levar eventuais leitores à sua aquisição, o que não seria de todo inútil, confesso, porque a leitura de "Um Almoço de Negócios em Sintra" talvez contribuísse para cada um de nós esboçar, pelo menos, o seu auto-retrato. Estou certo que encontraríamos "pontos comuns" com algumas figuras ali descritas, não nos pormenores estéticos, mas perfeitamente identificados nas personalidades recebidas por herança e das quais não nos conseguimos libertar, vá-se lá saber porquê (ou sabemos?).
Gerrit está, no livro, contra os senhores dos guichés das repartições públicas, (e eu também - estamos todos!) porque, como relata, "muito nas calmas, vão cavaqueando…"; salienta, pela negativa, a enorme burocracia de que somos vítimas, e dos bucólicos e ronceiros carros de bois (ainda circulam por aí?) poetiza uma imagem simpática, mas não compreende "o que é isso de existir uma alma portuguesa", talvez fatalista - tão fatalista como a força do fado que não consegue definir. É – escreve – sentimental de alto a baixo, sem nunca ser vulgar.
A aldeia onde mora o "nosso conterrâneo","... é muito carente..." mas o presidente de Junta de Freguesia (naturalmente, o livro no seu todo ou em parte foi escrito por altura de eleições autárquicas) não se cansou de fazer promessas "eleitoralistas"! "Veremos se cumpre, sobretudo o alargamento do cemitério", mas Gerrit sugere ao eleito: "... à menor lufada de vento, falta a electricidade. Dez, doze vezes, por minutos ou por umas horas. O senhor presidente da junta bem poderia pedir um reforço do distribuidor local".
Hoje como ontem, afinal…
O incumprimento de horários é outro dos aspectos do retrato de ser português…
As casas "tipo maison" também não passaram despercebidas ao seu olhar, e um dos capítulos é inteiramente dedicado à "fealdade com que Portugal está salpicado".
Singelas citações da obra servem, tão só, para se ficar com uma ideia do manancial das observações descritas - algumas incomodam pela irreverência do conto, mas certo sentido de humor adoça a prosa.
Poderia "surripiar" do livro outros apontamentos interessantes, mas como estão inseridos em determinados contextos, seria pura especulação o acto em si. Fica, porém, o conselho: se tiverem oportunidade, não deixem de saborear as "estórias" deste "Almoço de Negócios em Sintra". O País que temos caminha em velocidade cruzeiro, de facto, mas lá vai fazendo pela vida e nem tudo está como era dantes, felizmente. Hoje, Gerrit Komerij escreveria este livro?
...
Gerrit Komerij é uma das figuras mais marcantes da vida intelectual holandesa. Em 1993 foi-lhe atribuído o prémio P.C. Hooft de Ensaio, um dos mais importantes galardões literários do seu país. É autor de mais de meia centena de obras literárias e contabiliza uma mão cheia de prémios prestigiantes; em 2000 foi eleito pelo público para ser o Poeta da Nação (Holanda), estatuto que é atribuído por um período de cinco anos. Vive em Vila Pouca da Beira desde 1984.

"Coroa de espinhos"


As margens do rio, que corre aos pés da minha aldeia serrana, enfeitam-se de flores amarelas mal a Primavera acorda de meses de sono revigorante.
De menino lhe soube o enfeite e o aroma, perto do Urtigal, mas nem precisava de percorrer os caminhos enviesados que ainda nos levam àquele pedaço de paraíso, porque à porta da minha casa, do outro lado da rua, o panorama é exactamente igual, sobretudo agora, com a quinta do Chiado votada ao abandono, a Mimosa encontrou terra fértil e cresce sem rei nem roque. Selvagens ou não, pouco me importa, gosto daqueles cachos de um amarelo vivo, e só eu sei como me atraem no tempo próprio; depois, sim, as árvores desfeiam no tom verde-escuro e não lhes dou atenção.
A Mimosa, pelo que sei, tem no Homem um inimigo acérrimo, e não é para menos: ela escorre por montes e vales, invade propriedades menos cuidadas, e se não houver tento, é bem capaz de, ilegitimamente, fecundar terra de cultivo. Portanto, o Homem, no seu estimado interesse, mata-a mal começa a crescer aqui e ali, a medo, com duas folhinhas rendilhadas à procura do Sol que as fará crescidas na direcção das estrelas.
Uma das variedades da família das Acácias, oriunda da Austrália segundo os entendidos em Botânica, a Mimosa que conheço, a dada altura, passou a fazer parte da minha vida pela simbologia que trouxe ao imaginário dos rituais Maçónicos, com um deles, segundo a lenda, eternamente ligado à morte do Mestre Hiram Abif.
Sem mais pormenores que não vêm a propósito, fica, pelo menos, a assunção daquilo que sou, para que se entenda que há conhecimento mais lato…
Na busca do que é justo e perfeito, fiz da expressão grega Akakia código de namoro, visto ser usada (a expressão) para definir qualidade moral, inocência e pureza de vida, e juntei-lhe a portuguesa Mimosa para reforçar a sensibilidade e a ternura do encantamento, como é a festa sempre anunciada do nascimento de Jesus - em si mesmo um acto de Amor, intenso e unânime. A criança que "está para nascer" vai ter a sua existência nefastamente ligada a uma das seiscentas espécies existentes, a acácia espinhosa, segundo alguns historiadores, que acreditam ter sido a coroa de espinhos com que os romanos coroaram Cristo antes da sua morte, feita de um ramo desta árvore, considerada sagrada pelos egípcios e outros povos. A Bíblia é, aliás, rica em alusões à madeira da acácia; por ser dura e duradoura talvez tenha servido para construir a Arca (de Noé) e a Mesa da Última Ceia de Cristo…
Li bastante sobre o tema, daí a liberdade com que me arrogo para especular: sendo a acácia considerada árvore sagrada, como interpretar então o gesto dos soldados romanos em relação a Cristo? Um acto de crueldade, de sentido burlesco, ou será que alguém, conhecedor da simbologia da acácia, induziu a soldadesca a usar este tipo de ornamento? A coroa de espinhos foi colocada na cabeça de Jesus com a intenção de fazer troça, como a Igreja Católica salienta?
Esta relação entre a acácia espinhosa e Jesus Cristo talvez tivesse mais sentido lá para Abril, a propósito da Páscoa. Mas, se a Ressurreição é a festa do "renascimento" de Jesus, não é de todo descabido associar "o nascimento e a morte do Rei dos Judeus" num texto de jornal, que nem croniqueta é – apenas um devaneio, a que me propus. Agora, o que importa é o tom de festa pela alegria do nascimento de Jesus Cristo.
Entre hossanas e cânticos pagãos, o Natal, sem termos muito bem a consciência de como tal é possível, na sua essência representa um tempo de paz e fraternidade que nos toca de perto, mesmo aos não crentes, na História de um menino que, pela sua conduta, revolucionou a Humanidade.
A interpretação simbólica e filosófica da Acácia, na Maçonaria, lembra o lado espiritual que existe dentro de nós, daí esta associação de ideias e ideais, face aos "mistérios" onde me revejo sem ambiguidades.
Quanto às flores com que me deleito, espero pelo seu "nascimento", lá para Março.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Ai coração, coração!


De fonte segura nada se sabe sobre o futuro do SAP de Oliveira do Hospital. Talvez fique tudo como está (improvável!) ou então a responsabilidade (diz-se…) do atendimento nocturno passará pela competência dos serviços da Fundação Aurélio Amaro Diniz. Há quem argumente que o Hospital oferece valências relevantes, logo, a mudança traria benefícios à população...
Seria interessante recuar no tempo e contar a história do nosso Hospital, mas deixemos isso para melhor ocasião, porque o que importa, agora, é saber qual a solução encontrada. Obviamente, nem equaciono a hipótese de ficarmos sem assistência médica durante a noite, mas se tal vier a acontecer, é certo que algumas vidas humanas ficarão perante uma situação de elevado risco, principalmente se se vierem a verificar situações de urgência sem hora marcada – como me sucedeu na noite do passado dia 31.
A minha “estória” é semelhante a tantas outras: o coração achou por bem “ir de férias”, e vai daí “alertou-me” para a necessidade de repouso conveniente.” Partidas” destas não se fazem a ninguém, quanto mais ao dono do dito músculo, que (quase) sempre o estimou, deu-lhe amores e paixões q.b. e andava agora com ele nas palminhas, não fosse cair na esparrela de outra paixoneta…
Vá-se lá saber porquê, cansado de me aturar, atirou-me para o Centro de Saúde de armas e bagagens. Felizmente, o SAP ainda não recebeu guia de marcha (sorte minha!), e a equipa liderada pelo Dr Herdade tratou dos primeiros cuidados com eficiência e competência. Coimbra fica logo ali, a dois passos; na prestimosa e fundamental companhia do Enfermeiro Carlos, a viagem foi “rápida” e, uma vez mais, a sorte esteve comigo: cheguei aos HUC a tempo de tratamento capaz.
Durante o trajecto, viajei pelo mundo dos sonhos fantásticos (?), em tons de cinzento; mais tarde relacionei o “filme” com algumas leituras especulativas (?), interessantes apesar de tudo, imaginação fértil, digo eu, mas devo confessar o espanto por, de um momento para outro, as dores asfixiantes no peito terem desaparecido; veio um tempo, segundos talvez, de sossego maravilhoso, e não fora o chamamento do Carlos, talvez me deixasse ficar por ali!
-Fale comigo! – disse – e abanou-me o braço!
Regressaram as dores e a sensação de sufoco. Quando dei por mim, estava deitado numa marquesa, rodeado por umas quantas pessoas vestidas com batas de cores diferentes.
Os dias que passei na Unidade dos Cuidados Intensivos Coronários foram “óptimos” – nada a dizer do tratamento vip com que fui obsequiado; porém, ficaria de mal com a minha consciência (e o meu coração…) se não trouxesse à ribalta o nome da enfermeira oliveirense Sónia Nunes pela gentileza (à sua competência profissional, e das restantes colegas, nota máxima!) das suas atenções, a lembrar-me a cada momento os “trabalhos de casa”:
- Tem de mudar de vida, descanse mais, alimente-se bem, não faça isto, não faça aquilo…
Respondia a tudo que sim, claro – quem apanha um susto destes (ai coração, coração!) só pode dizer ámen a todas as recomendações.
Entretanto, em Oliveira, o Ricardo Brito vai ao leme dos barcos de ambos, com jeito e algum sacrifício: de manhã nos computadores, ao meio dia de serviço aos cafés, volta à informática, e à noite regressa ao “local do crime”, que é como quem diz, ao barzinho onde me deu a macacoa! Enorme amigo este “filhote”, que adoptei pela via do amor fraterno, vai para sete anos…
Naquele dia, se o João Paiva tivesse sido multado por excesso de velocidade, a responsabilidade era minha - foi o João que me conduziu ao Centro de Saúde num abrir e fechar de olhos. Amigos destes, felizmente tenho mais, muitos mais, e o Ritual deve ser o único bar do mundo onde esses amigos se servem, levantam a loiça, e ainda pagam a conta!!!
A partir de agora, vou preocupar-me mais a sério com o futuro do SAP da minha cidade, não vá o diabo tecê-las e eu ter de ir às pressas para Seia ou Arganil - a sorte também se procura… quando a assistência médica está a dois passos; de outro modo, a viagem é capaz de ter só um sentido.

Seis “pompons” na beira da estrada


Ouvi na rádio que a Câmara Municipal de Arouca, no distrito de Aveiro, está a projectar no terreno uma iniciativa fora do vulgar, tendo em vista dinamizar o turismo rural
Recorro à página oficial da “ANCRA” - Associação Nacional dos Criadores da Raça Arouquesa” e fico a saber que “…as vacas adultas, de manhã são levadas para o monte onde passam todo o dia e só regressam já de noite. Os vitelos ficam na "corte". Mamam antes da vaca sair e quando ela regressa do monte…” .
Portanto, a estória que ouvi de fugida, tem a ver com esta espécie de gado bovino que se alimenta nos baldios da região, mas o que prendeu a minha atenção, foi o pormenor da ideia: qualquer um de nós pode adquirir um animal desta raça (ou mais!), que terá um chip incorporado no dorso de modo a ser localizado com facilidade enquanto vagueia pelos montes. A entidade responsável pelos cuidados dos animais, sedeada no local, a qualquer hora do dia, pode ser contactada pelo proprietário e este, se desejar, pode visitar o seu animal no habitat natural. O dono também pode negociar a vaca com quem entender, mediante certas regras, etc, etc – ouvir as notícias na rádio, a meio, não é o mesmo que saber das ditas pelo jornal, porque, pela leitura, ficamos com a informação por inteiro, podemos voltar atrás, reler…
Interessante, na minha opinião, a iniciativa, quase cópia do que o Jardim Zoológico pratica quando nos decidimos “apadrinhar” determinado animal, contribuindo para o seu sustento; neste caso, a vaca pode ser negociada e é bem possível que apareçam “investidores” interessados no lucro…
Por falar em “apadrinhar” animais (e agora começa outra estória, inspirada na iniciativa da Câmara de Arouca), há uns tempos atrás dei de caras com duas raposas, ainda jovens, penso, que se cruzaram comigo quando ia para casa, noite alta. Apesar de conduzir devagar, diminuí ainda mais a velocidade do meu carro e fiquei a vê-las, por segundos, numa “luta” sem intenções perigosas, digo eu. Terminada a brincadeira, foram à vida, atravessando a estrada. A partir desse dia, pelo menos uma está “à minha espera”, e logo que a luz dos faróis a ilumina, levanta-se, olha para “mim”, e passa para o outro lado, perdendo-se no mato que, por ali, é rasteiro.
Acredito que os progenitores andem por perto, mas como as “nossas relações são pacíficas”, não creio que “aconselhem” os filhotes a mudarem de pouso.
O mesmo “dirão” os esquilos que de quando em vez vejo saltitar nos carvalhos, durante o dia, ou os “Saca Rabos” (espécie de gato bravo) quando procuram caça, coelhos ou javalis desgarrados. De certa forma, são todos meus “afilhados”!
Quantos às perdizes, nem vê-las!
Como posso escolher um dos dois caminhos que tenho à disposição para ir e vir, alterno. Um deles, de curvas bem contadas, talvez umas noventa! Se a paciência é pouca, vou pelo outro - sempre é mais a direito por entre os pinheiros de porte alto.
É neste percurso menos sinuoso que tenho os meus "encontros imediatos", talvez por bordejar, em certa medida o “meu rio” (pobre dele, quase morto). Como os meus “amigos” bichos matam a sede nas águas do Alva, andam por lá, fazem os ninhos nas árvores, ocupam as tocas de uma assoalhada e convivem entre si segundo as regras da mãe Natureza.
Surpresa maior: há dois dias, depois de (mais) uma curva, reparei que estavam uns “pompons” enroscadinhos na berma da estrada. Parei, as bolinhas de pelo ganharam vida e, meio assustadas esconderam-se na valeta pouco profunda. Contei quatro cachorrinhos matizados, entre o branco e o preto, alguns com tons de cinzento no pelo.
No dia seguinte, à hora do almoço, levei-lhes meia dúzia de conchas de sopa – daquela que só a mãe Natália sabe fazer, espessa e saborosa, de fazer crescer água na boca só de olhar!
Então, decidi: como não posso ter uma vaca de raça “Arouquesa” mesmo minha, e como não sou “padrinho” de nenhum animal em cativeiro no Jardim Zoológico”, assumi a responsabilidade de alimentar, pelo menos uma vez por dia, os “meus pompons” - que afinal são seis e não quatro! - mais a mãe, baixota e feia de tão magra, mas que “sorri” abanando o rabo sempre que me vê ; fica especada a olhar os filhotes e é incapaz de se servir um pouco que seja da ração que despejo em recipiente próprio – sirvo-a à parte, “agradece” com o mesmo “sorriso” e, quando volto à estrada, pelo canto do olho vejo que continua de rabito no ar, como se estivesse a dizer adeus.

terça-feira, 14 de abril de 2009

A “crise” de agora e “A arte de Furtar” (Séc. XVII)



O programa Prós e Contras da RTP obriga a um manancial de excelentes raciocínios. Quando o tema vai de encontro às minhas preocupações, fico atento do princípio ao fim.
Como responder à crise? – foi a questão em debate segunda feira passada, dia nove de Março.
Os convidados, todos eles especialistas nas matérias associadas, opinaram, mas dali não saiu, a meu ver, nenhuma ideia brilhante, precisa e concisa, mágica até, capaz de solucionar o problema que toca a todos….a todos, virgula, porque a crise não é como o sol quando nasce! A crise – sejamos justos – é só para alguns, depende! Melhor: cada um tem a sua própria crise, que pode ir da falta de dinheiro à ausência de perspectivas de emprego; sobre outras crises, tão díspares entre si, durante o programa, nenhuma delas mereceu honras de conversa.
Se ficarmos presos às grandes questões da tesouraria, La Palice diria que a crise só atinge…quem tinha milhões e passou a contar tostões! No debate, foi dito que há dificuldades, sim senhor, mas não “…passa disso”, tudo se há-de compor a seu tempo – era um optimista a dizer “coisas”.
Veio outro especialista poetizar a felicidade merecida com a ideia de que, por essa via, todas as soluções estão ao alcance das nossas mãos, mais coisa menos coisa – era um sonhador a tirar a água do capote, na eventual falta de conhecimentos contabilísticos.
Animado, o programa lá foi por minutos bem contados a caminho do fim…
O mundo está de pernas para o ar, sem dúvida, mas não será o tempo de agora que lhe regista o passamento, apesar de todas as crises – nem o Bandarra o previu nas suas profecias! Portanto, a vida continua, com altos e baixos, como as marés…
Será “pecado” badalar a crise e, mesmo assim, encher os estádios de futebol?
O “nosso” Tony Carreira lotou por duas vezes o Pavilhão Atlântico – que se passa com os pecados dos seus leais seguidores? Fico-me pelos exemplos de “Gente Feliz com Lágrimas” (perdoe-se a analogia com a obra de João de Melo) porque das duas uma: ou estes milhares de portugueses, amantes da bola e das cantigas do Tony desconhecem a realidade do País e do resto do mundo, ou então são mesmo uns sortudos e não há crise que lhes chegue, por mais desemprego que possa ser contabilizado pelos sindicatos, despedimentos, etc., etc.
Ainda a crise. Veio parar-me às mãos uma edição gráfica da Gulbenkian, onde se podem ler alguns textos escritos no Século XVII. Um deles, sem nome de autor, intitula-se a “Arte de Furtar”. Ficam os rótulos que encimam alguns capítulos do texto panfletário (?), para merecimento da atenção do leitor: “Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira”; “Como a arte de furtar é muito nobre”; “Como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões”; “Como se furta a título de benefício”, etc.
“… Assim se prova que há arte de furtar; e que esta seja ciência verdadeira é muito mais fácil de provar, ainda que não tenha escola pública, nem doutores graduados que a ensinem em universidade, como têm as outras ciências...” – anotou o escrevinhador, ilustre desconhecido.
Como se fala de crises, bancos sem dinheiro, paraísos fiscais e outras negociatas, o livrinho… nem de propósito, parece ter saído agora do prelo.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Nas asas do sonho, a caminho do Piódão





“Lena”:
Há dias lembrei-te as férias que Agosto coloca no passaporte; este ano, a sugestão do nosso Governo, em nome de todas as crises, é bem clara: vai para fora… cá dentro!
Como o vai/vem das ondas do mar cansa alguns sentidos, e a “tua” serra tem as vertentes pouco íngremes, convidei-te, se bem te lembras, para uma visita ao Piódão, que fica logo ali, do outro lado da “minha”serra.
Se decidires aceitar o convite, ficam garantidos horizontes fascinantes, para lá de todos os montes, precipícios de meter medo e, bem lá no fundo, aldeias inteiras que nem imaginas com vida – mas ela existe, e as pessoas sobrevivem às custas daquilo que a terra dá e pouco mais…
Aconselhava o percurso mais curto; se vieres desses lados, de cima, entras em Coja, segues em frente, sobes para a Cerdeira, continuas a subir sempre… sempre… sempre, e logo vês uma placa: Piódão, para “este lado”, para a esquerda.
Aconselhava, disse, mas desaconselho, porque a estrada está um horror, tens de levar o carro a passo de caracol (o que também não é mau, sempre vês melhor a paisagem, e não arriscas nenhum susto se, em sentido contrário, aparecer pela frente outra viatura).
Mesmo assim, depois deste alerta (a Câmara Municipal de Arganil por certo desconhece a situação em que se encontram os buracos, por isso “sobra” pouca estrada…) se queres, aventura-te. Se vieres com sede de água fresca, a meio da viagem tens a fonte do “Pião”; pára, da mão fazes concha, e bebes até doer a garganta, porque a água chega gelada.
Com a sensibilidade à flor da pele, já deste como boa a minha sugestão, e ainda não chegaste ao alto do Piódão, falta pouco…
De volta à gincana entre os buracos, não te apresses, … um pouco mais e… parece que te deu uma “coisa”: num segundo ficas com o olhar preso naquele amontoado de casas escuras, muito juntinhas – parecem uma só, com muitas dependências!
Stop!!!
Então, não dizia? Ficaste sem palavras perante o panorama incomensurável que vais guardar para todo o sempre no arquivo da memória!
Antes de desceres (a estrada continua ruim, e lá mais abaixo pior ainda por causa de algumas obras - cuida-te!) deves perfilar-te perante a lembrança dos passos de Miguel Torga, que por ali andou e aí se “despediu de Portugal”, “com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada…”. A “pedra bruta”, com a frase completa está mesmo aí, à tua frente, depois daquelas urzes, vês?
Continua a viagem devagar; se decidires pernoitar, faz a reserva na pousada que fica à tua direita – dizem que o serviço é excelente, nada me diz que o não seja; garanto, isso sim, o silêncio dos montes!
Finalmente, o largo da Igreja! Vê como o monumento tem o branco de todas as purezas, como o gostar de quem gosta do que é puro, como o ar que respiras na “minha” serra!
A partir daqui, não te conduzo os passos, mas vai por mim dar uma palavrinha ao senhor Lourenço, que tem uma venda com o seu nome. Mas só uma palavrinha; se for com a tua cara (é que vai mesmo, sendo tu como és…) não te larga com estórias – mais de mil! - que diz ter escritas em setenta agendas! Já agora, dá um salto ao “Solar dos Pachecos” e prova um dos deliciosos licores que tens à disposição, mas aquilo trepa, se abusares, já sabes...
No regresso, sugiro outra estrada com melhor piso, em direcção a Vide. É mais longe, mas compensa.
A meio caminho, encontras Chãs d’ Égua. Vai com tempo para ficares largos minutos na descoberta de vestígios de Arte Rupestre. E há paisagens de sonho, trabalhadas pelo Homem, casas, pontes, uma delas suspensa, única. Tudo parece arrumado num tempo que se mantém igual, à excepção das estradas e caminhos por onde se chega mais rápido – estradas e caminhos que a população usou para fugir das leiras, das encostas, dos animais que parece nunca terem existido, e das pedras, das pedras com as quais se construíram casas…cobertas de pedras.
A aldeia é linda para quem continua na viagem com a sensibilidade à flor da pele.
Para voltares a casa basta seguires as “placas”, mas se trouxeres o GPS, nem delas precisas!

Convenci-te com a ideia?
Um abraço, que vai daqui até aí.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O contador de "estórias"

Ao João Soares, mestre e companheiro de incontáveis serões.

Havia um amigo comum e foi por essa via que eu e o “contador de estórias” chegámos à fala.Das conversas simples passámos à discussão de temas importantes (ou nem por isso…).
Debatemos ideias e encontramos pontos comuns no modo como nos revemos na comunidade.Se nos entendemos nos ideais, naturalmente procuramos nos “bons costumes” o equilíbrio entre a “sabedoria a força e a beleza” dos nossos actos. Infelizmente, continuamos a “anos-luz” da “perfeição”, mas acreditamos que virá “um tempo de amor e fraternidade total” para que se cumpra o vaticínio do tal amigo comum: Fernando Vale.
O “meu contador de estórias” tem tanto de desportista como de boémio, mas não são apenas as memórias desses tempos, com o requinte do pormenor, que fazem de si a melhor das companhias numa tertúlia ao serão…Como gestor e autarca, recolheu fama de “pessoa séria, competente e rigorosa”. Agora, diz ter atingido a “reforma sem vencimento”, e fica longe dos encómios, de modo próprio.Para mim, basta que remexa nas suas lembranças - fico de imediato preso às circunstâncias de cada momento vivido na irreverência da juventude, mas não desdenho uma boa “estória” dos seus tempos de homem feito.Aprecio, sobretudo, a brejeirice com que envolve cada conto, talvez pelas gargalhadas que arranca à plateia da qual faço parte. Gabo-lhe o talento.
Peço-lhe para rabiscar as memórias, e a resposta vem sempre a meias com um sorriso, que não, “são coisas minhas” – diz.Perante isto, “ameaço-o” de gravar os seus contos, à socapa, e um dia ainda vou enricar à sua custa – garanto-lhe!
O meu amigo e “contador de estórias” volta a sorrir, sorri sempre, porque está de bem com a vida e consigo próprio.….

Possivelmente...


É tarde nesta madrugada que tem quase horas de sol.Medito sobre as conclusões que vêm em catadupa.
Frágil, o espírito parece que dói.
O corpo gasta-se pelo peso das luas cheias, sempre redondas.
A minha fortuna é tempestade do que sou em constante desalinho.
Entre o pouco e o nada, fico sonhador do que não fui capaz, teimoso e irreverente, submisso às vezes – apaixonado, sempre!
Penhoro a palavra que fica entre a honra e a safadeza, numa tentativa de adivinhação de uma noite de carícias e desejos, sem pecado nem mácula.
Faço leilão de mim, mas guardo um cordão de prata fina que me prende ao desconhecido da alma.
Se há desafortunada existência, então o pensamento continuará em viagem com destino incerto.
Possivelmente, não chegarei ao fim da caminhada a que me proponho.
Possivelmente…

O retrato


Tenho um retrato de mim à vista, mas não me reconheço quando o fito, pausadamente ou de forma fugidia. Nos traços do rosto não há sinais de caminhadas e nas pupilas não vislumbro lampejos de felicidade; até o meio sorriso pouco diz…
Houve um tempo de balanço, quando as esperanças definharam, com resultados positivos. Agora, se desnudo a alma e a deixo por aí, carpindo mágoas e mendigando gestos de afagos, fico sem saber quem sou, quem fui, e quanto ao dia seguinte, não vislumbro mudança de opinião – apenas a expectativa do que possa suceder entre a manhã e a madrugada, faz com que fique atento.
Se o retrato pouco diz (?) e a alma inquieta não veste sinais de esperança, que farei com este corpo?As palavras, arranco-as do mais recôndito refúgio e espalho-as por aí, a esmo - talvez alguma germine em terra árida, fecundando-a de emoções, embora tardias…
Perante as dúvidas do ego, decido-me pela descoberta do outro “eu”, ao espelho, mas não vejo o cordão umbilical que me amarra à vida.Terei passado ao Oriente Eterno? Se assim é, o corpo, que não tinha utilidade visível, está no sítio certo – o tempo se encarregará de apagar das memórias as minhas coisinhas miúdas, e talvez ganhe rótulo de “bom sujeito”, mas pouco lúcido.
A alma, quero-a imortal, sem lembranças do último adeus.

Arre-burro


Que eu saiba, há, pelo menos, um burro de quatro patas que passa debaixo da minha janela, arrastando ronceiramente uma carroça, velha como ele, o burro.
Se o dono tivesse acompanhado o progresso, por certo a carroça teria rodas com amortecedores e pneumáticos, mas como não tem, acordo logo pela manhã, bem cedo, com um barulho sem melodia; não sei onde começa, mas vem de longe, e vai chegando perto, mais perto, sempre mais perto!
Saint-Exupéry, no "Principezinho", é muito mais romântico quando imagina a felicidade da raposa:
-"... Por exemplo, se vieres às quatro horas, às três, já eu começo a estar feliz.E quanto mais perto for da hora, mais feliz me sinto...".
Por mim, não posso ser como a raposa, ansioso pela carroça, que o burro puxa sem pressas, numa hora madrugadora para quem se deita sempre no dia seguinte.
O ruído das rodas, revestidas a aço, como chegou também desapareceu: devagar, mais distante, e perde-se no silêncio. Depois de encontrar o jeito, volto a adormecer. Interromper o sono com gosto, só quando a Filarmónica vem, estrada abaixo (a banda de música, que me lembre, nunca subiu, sempre desceu a minha rua…), a tocar uma marcha, mais uma menos afinada, com os "pratos" e o bombo a sobressairem dos clarinetes e da requinta, por vezes dos contrabaixos - só as trompetes lhes fazem frente, mas nem sempre!Duas vezes no ano, é certo e sabido que tenho a Filarmónica debaixo da minha janela num simpático cumprimento de "bons dias", e aí sim, gosto do som que vem de longe, na minha mente, acordo devagar, e delicio-me. Se regresso ao sono, as voltas nos lençóis são suaves, e aos sonhos também...
O sossego da noite, na minha aldeia, não tem preço; o vento, quando vem, sopra de modo diferente nas "portadas" das janelas e a chuva parece acariciar os cocurutos das árvores. O Sol, se eu quiser, beija-me o rosto através da janela. Como os vizinhos moram mais para os lados, não fazem sombra nem barulho, o que, convenhamos, é uma bênção dos céus.
O burro, ao fim da tarde, larga a carroça perto do aconchego do curral; posso contar pelos dedos de uma mão as outras viaturas com motor que passam debaixo da minha janela. A pé, são poucos os viajantes que se fazem ao caminho, o que não abona o censo da última década.
Estava a cogitar sobre todas estas vantagens que a minha aldeia me proporciona, e sou invadido por um arrepio, da cabeça à ponta do dedo grandão do pé.
- Ups… de onde vem isto? – pensei, tremelicando..
Ah, a solidão de quem passa dia após dia ouvindo o silêncio da minha rua e das outras ruas, quase desertas de vida, e o medo que me apoquenta quando me imagino naquele casarão, sozinho, um dia…
O burro, pela lógica da (sua) vida, mais cedo ou mais tarde, entrega a alma ao Criador; a Banda Filarmónica definha a olhos vistos…isso significa que vou ter ainda mais silêncio, não tarda!
Se o barulho, agora, tem este "ruído", imagino como será daqui a uns tempos…
… A não ser que eu vá "desta para melhor" antes do burro deixar de ter forças para andar com a carroça a reboque, ou se fine de velhice.
E quanto à "banda", até com meia dúzia de músicos se toca uma marcha fúnebre!

quinta-feira, 19 de março de 2009

Ditos e (inter) ditos


A minha cidade tem muitas noites sossegadas – demasiado sossegadas - como hoje, recolhe-se cedo, mas aqui, no meu "universo", de tecto negro e paredes claras, onde repousam quadros do Wil de Wildt, Frenk Steffens e Rui Monteiro, iluminados por luz branca e directa, o som que me chega aos ouvidos vem do dedilhar das cordas das violas.
São dois os artistas, dois os instrumentos: uma Fender e uma Ovation que se completam como amantes apaixonados; à suavidade das cordas de nylon sobrepõe-se o timbre do aço no solo de peças musicais, tão clássicas quanto a minha mente consegue catalogar no tempo: "Guitar Tango", "Apache", "The Savage"... e mais e mais!!!
Os " Shadows" foram e são o meu grupo musical de eleição, e deles guardo "quase tudo", desde os primórdios dos seus verdes anos à década de oitenta - outra época de ouro nos arranjos de "Themes & Dreams", por exemplo.
Só o Hank Marvin poderia fazer, agora, com que me sentisse jovial no sossego do meu mundo e num tempo "quase perfeito"!
O Sérgio e o "Zé" Augusto, às vezes, têm destas memórias, entre dois whisky's.
...
A Isabel trouxe uma amiga, escolheram uma mesa de canto; pediram uma cerveja e um cocktail. O taberneiro sugeriu a marca da moda, servida no copo característico, e sobre as "misturas" falou das suas invenções. A amiga da Isabel preferia outro composto: vinho tinto aquecido, rodela de laranja, um pouco de canela e uma pitada de cravinho - de fácil preparo, acrescentou.
- Intragável - pensei.
Vieram as bebidas e a Isabel, sorridente e bem disposta, sugeriu que provasse a mistela, o que fiz por simpatia.
Para o meu palato, simplesmente horrível!...
Não dei parte de fraco, corri à copa e bebi um enorme copo de água!
A noite ia alta.
Depois de saborear com deleite a beberagem, a amiga da Isabel pagou a conta e saiu.
A Isabel ficou no mesmo lugar, mas à segunda cerveja, decidiu-se pelo balcão e por ali ficámos em amena cavaqueira
Procurei ser bom ouvinte de estórias intermináveis, sem comentários: era a noite de "todos" os desabafos!
Veio outra cerveja.
Falámos de terras no "fim do mundo", de viagens, de sítios que "adorávamos conhecer", de amores e desamores...
A Isabel deixou de olhar de frente, e quando voltou a fazê-lo, trazia os olhos molhados, não sorria, como sempre faz...
Concluímos que o momento era o menos próprio para recordações que se desejam esquecidas. Para sempre!
Ponto final.
..... E fiquei sem saber o nome do cocktail que, pelos vistos, é típico de países frios, como a Holanda - é o que afiança a Rita, emigrante a meio tempo no país das túlipas
- Agora percebo porque é que os holandeses gostam tanto de Portugal – diz a Rita cansada de tanta água!
Para estas duas amigas, o " sol português não as deixa" voltar às origens!

O peso dos anos tem a importância e o valor do trajecto que percorremos.O carrego pode ser pesado se a vida foi madrasta, ou leve, se a fortuna teve sorrisos de boa vizinhança. Em qualquer dos casos, a memória funciona como arquivo de todas as coisas, boas e más.
Por vezes, de forma voluntária, recordamos outros tempos, perto ou longe do momento presente, ou é o acaso que nos faz lembrar o passado.
Casualmente, hoje, encontrei na mesa de um bar um jornalzinho que não folheava desde os tempos em que ia à Missa, aos domingos, já lá vão uns anitos. Chama-se O AMIGO DO POVO, é editado pela Diocese de Coimbra, e tem de vida mais de noventa anos!São duas folhas "A4", de conteúdo evangelizador, naturalmente, e é informativo quanto baste.Tinha (e tem!) uma secção que lia com enlevo: "Ao calor da fogueira" - diálogos simples e moralistas, como é o caso da edição 4280.
De tanto querer saber (e nada sei!...) tornei-me agnóstico, mas este jornalzinho transportou-me à infância na minha aldeia, ao padre Januário, às brincadeiras do pião e aos futebois no largo da escola, às reguadas da professora Georgina e aos seus preciosos ensinamentos, à primeira namoradinha, ao Peixoto (a quem sovei de raiva, certa tarde, por causa da Teresa, que era miúda de alguma beleza e sorriso brejeiro), aos passarinhos presos nas armadilhas, aos mergulhos no rio, ao Américo Cigarrada (que saudade dos peixes que agarrava à mão, no rio Alva, só para me satisfazer os desejos!...), à avó Virgínia, à mãe Natália...
O AMIGO DO POVO era o meu jornal de domingo, que lia durante a semana!

Contagem decrescente



Os filósofos da bica e alguns “entendidos da matéria”, entre duas “imperiais”, especulam de forma brejeira (sem necessidade, digo eu…) sobre a idade de cada conviva, e não é de admirar um “puto de quarenta” dizer a outro, na mesma faixa etária, que está a ficar “velho”, ou já lá mora, quando ela, a velhice, se faz anunciar com uma simples e fugaz enxaqueca, por exemplo, ou se determinado “jovem” assume cansaço físico depois de uma noite de pândega. (Há indícios bem mais aborrecidos, e desses quero distância, nem os “enuncio”!).
Depois, há sempre um ou outro, de conversa mais séria na aparência (rosto fechado, voz timbrada, palavras eruditas…), que afirma ser a velhice coisa natural! Um deles chegou a encadear uma ladainha, que começou na concepção da vida e terminou…na “terceira idade”.
Na verdade, a contagem decrescente pode ser contabilizada a partir do momento da fecundação, mas imaginar uma criança daí a uns bons e largos anos, no tempo do ocaso da sua existência, não é ideia que se tenha, sobretudo quando os mais pequenos nos brindam com gestos de inocência e/ou palavras de excelsa ternura, deduções lógicas e inteligentes na curiosidade – momentos de espanto e admiração que guardamos na caixinha das memórias como autênticas relíquias.
A Margarida contou-me que o infante Guilherme só come peixe se este lhe aparecer no prato, inteiro, da cabeça ao rabo; de resto recusa-se a ingerir qualquer posta de “peixe mutilado”, que é como quem diz, na sua imaginação, retalhado aos pedaços, grandes ou pequenos. Mas do que o Guilherme não gosta mesmo nada é de “morangos mortos”! – nem mais nem menos gelados ou iogurtes onde apareçam bocadinhos daquele fruto.
Uma vez, um dos meus filhos, o Carlo, resolveu semear um caroço de laranja num dos vasos com plantas, que ornamentavam a entrada do prédio onde habitávamos; a sua maior preocupação era, no futuro, o crescimento da árvore e os frutos que haviam de nascer - certamente os vizinhos iriam “roubar as suas laranjas” , e isso não admitia!...
Enfim, “estórias” que Fernando Pessoa por certo quis retratar de forma sublime quando escreveu que o “melhor do mundo são as crianças”!
Grande é a poesia, a bondade e as danças... Mas o melhor do mundo são as crianças…”!
Este “devaneio”, não tem nada a ver com o tema da croniqueta – ou terá? Adiante.
Estou em acreditar, por completo, em algumas das teorias sobre a velhice, mas a Catarina, há pouco, “baralhou-me” com o que aprendeu na Universidade.
Simples: diz-se que uma pessoa é idosa (velha…) a partir dos sessenta e cinco, e muito idosa (demasiado velha…) depois dos oitenta! O meu dicionário, porém, é mais pragmático: velho, significa muito avançado em idade, antigo, que já não está em uso; fora de moda; antiquado; muito usado, gasto; homem de idade avançada, ancião. Sobre a pessoa idosa: que tem bastante idade; velho; senil!
Senil?!
Uff…tento dar a volta ao texto e “localizar-me” nas definições de forma airosa, gentil e simpática!!!
Aqui para nós, não me revejo em nenhuma das características enunciadas; “gasto”, talvez - aceito que já não corro atrás de uma bola como o fazia quando tenha vinte anos, ou “fora de moda” para as “miúdas” de trinta, ou mesmo dos quarenta, e mais não digo…
Como se compreenderá, sou suspeito numa auto análise, assim, deste jeito, como quem se confessa ao prior da freguesia, mas espero que me dêem o benefício da dúvida, embora reconheça que, um dia destes, depois de estar horas à espera do médico de família, no Centro de Saúde - eu e mais umas vinte pessoas, com os seus achaques, algumas com idade inferior à minha, cansadas e desgastadas pelo trabalho árduo do campo – senti-me velho por dentro! Pensamento estranho porque sempre valorizei muito mais o “espírito” eternamente jovem (pensava eu!) do que o “invólucro” com que cubro os ossos.
Enfim, “isto” tinha de acontecer, mais dia, menos dia – só falta chegar a idade da reforma, mas ainda há imenso tempo para me dedicar à delícia de ver os netos crescerem no "dolce far niente".

Quanto mais tarde, melhor

(Recupero a morte do meu canário, em memória do grande tenor Pavarotti)
...
A saudade é um “sentimento” semelhante ao amor, paixão, ódio e desprezo?
Segundo uma “ordem de grandeza”, onde deverá ficar colocada?
E a saudade, enfim, também é sinónimo de nostalgia?
Uma tarde destas, numa roda de amigos, ocupámo-nos com o tema de forma assaz calorosa, dado que, cada um de nós, tem da saudade opinião semelhante, mas díspar no conteúdo, segundo a sensibilidade, o que me parece perfeitamente normal.
Leio no dicionário que tenho à mão: saudade - sentimento melancólico causado pela ausência ou pelo desaparecimento de pessoas ou coisas a que se estava afectivamente muito ligado, pelo afastamento de um lugar ou de uma época, ou pela privação de experiências agradáveis vividas anteriormente; nostalgia - sentimento de tristeza motivado por profunda saudade, especialmente de quem se sente estranho, longe da pátria ou do seu lar.
Fica claro que a saudade e a nostalgia andam de mãos dadas e fazem parte das emoções fortes de todos os humanos.
Segundo a “Porto Editora”, é um sentimento e não se fala mais nisso – cada um terá de a colocar a jeito na lista das suas preferências, segundo o “grau de qualidade”.
A nossa discussão teve “picos de audiência”, bem perto da hora do jantar; o Rui, entre o silêncio e o meio sorriso, sugeriu a leitura de “Ignorância”, do escritor checo Milan Kundera , que, a propósito da nostalgia e da tristeza, escreve: “…Para esta noção fundamental, a maior parte dos europeus pode utilizar uma palavra de origem grega (nostalgia) e, além disso, outras palavras com raízes na sua língua nacional: añoranza, dizem os Espanhóis; saudade, dizem os portugueses. Em cada língua, estas palavras possuem um matiz semântico diferente…”.
Ora, de longe, um escritor de prestígio como é Kundera, aproxima-se com realismo do “fado português” (com toda a carga poética que lhe queiramos transmitir) e da palavra saudade que, segundo alguns tradutores britânicos, está classificada em sétimo lugar na tabela das mais difíceis de traduzir! Temos outra com as mesmas características?
Para os nosso irmãos de Cabo Verde, ficou sodade ou sodadi, tal a influência linguística, e é assim, com sodade, que os milhares de emigrantes cabo-verdianos sentem a ausência, tal como nós, da Pátria, da família, dos amigos, dos cheiros e sabores, da paisagem – de tudo que fica na memória - até dos sonhos!
Saudade e nostalgia podem associar-se à efeméride que, por qualquer razão, deixou marca na nossa sensibilidade. Escolho a “minha”: 14 de Setembro de 2006, meia tarde!
Outro tanto, se recuar uns dias para recordar a morte de um belo canário, cantor e sedutor como todos os canários - acontecimento comezinho, dirão…
Um dia, pela manhã, encontrei-o “adormecido” a um canto do “palacete de uma assoalhada”, onde havia instalado um trapézio para se exercitar.
Fiquei triste - estou triste - com o silêncio eterno do meu “amigo”; com alguma pompa, deixei-o aconchegado em campa rasa, debaixo dos “Kivis”, espalhei pétalas de rosa, e elevei a “oração”, que se justificava no momento, a todos os deuses do Olimpo, numa tentativa de marcar na lista de espera novo encontro, de preferência ao som de belos trinados, mas quanto mais tarde, melhor, porque, por ora, continuo a escutar os solos do “Bocelli” – um belo canário, cantor e sedutor como todos os canários.
Quanto à saudade, bem…a saudade – o “tenor” faz parte das lembranças das coisas mortas da minha saudade, por ter sido a única “coisa” viva da minha nostalgia.

A emoção de ter inveja

Alguns dos meus amigos estão de férias e a minha inveja é proporcional à qualidade imaginária das ditas, isto é: se o destino foi a Figueira, vá que não vá; Algarve, eriçam-se os cabelos, se foram de abalada até Punta Cana e arredores, começo a ficar vermelho, mas quando me chegam notícias da velha Europa, do tipo: “olá, por aqui está tudo bem, estou a jantar em Varsóvia (…), a passear por Riga (capital da Letónia, imaginem!) …”etc e tal, chispo labaredas!
A inveja é um tipo de sentimento interessante, estou de acordo com Rui Zink, escritor de mérito - que aprecio por certa linguagem desabrida - porque quando existe, a inveja, é sinal de que ambicionamos o mesmo que o parceiro do lado: emprego “fixe” e bem remunerado, talvez um carrinho com motor, mais actual, mesmo uns dias de férias em paragens de puro exotismo panfletário, por exemplo….
Diz o escritor: “…Calar uma emoção tão salutar como a inveja, que é o desejo de estar melhor (e não necessariamente o desejo de o outro estar pior), leva a quê? Ao sufoco, à castração emocional…” – uff, nem mais! A partir deste “elogio”, alguém se atreve a condenar uma das minhas invejas, por mais pequenina que seja? Haverá outras “invejas” que não são próprias de gente de bem, mas enfim...
Ora, a minha inveja, perfeitamente assumida, não é incomodativa, apesar de tudo, e como não faço uso dela, fico-me pelas raivinhas, igualmente invejosas e assumidas, sobre as viagens, passeios e visitas turísticas dos meus amigos. Bem gostaria de outros horizontes “nas minhas férias” que não estes, mas como estão longe do alcance do meu mealheiro, fiquei-me pela visita à rotunda da “Iral”, vi ao pormenor a escultura do Luís Queimadela, que tem feito levantar o som cavo das tubas, desavindas com a estética do belo, mas isso não é importante - como posso apreciar música clássica, se lá na aldeia, quando era miúdo, só ouvia a banda filarmónica?; para bom entendedor… – “descobri alguns recantos escondidos” do parque do Mandanelho, passei um excelente fim de tarde nas Caldas de S. Paulo, na companhia de amigos, voltei á Bobadela, enfim , andei por aí...
A propósito de música erudita: apesar de tudo, fui habituando o ouvido, quando era adolescente, e hoje sou mediano consumidor, graças ao tempo de África, sem televisão mas com rádio – novelas e fadinhos da Maria Pereira nos programas publicitários da Robbialac! E “sofri as consequências” do festival de Woodstock, apaixonei-me pela música dos Beatles, Shadows Amália e outra gente famosa do Show Business internacional; gostei do Conjunto 1111, Quinteto Académico, Tony de Matos, Simone de Oliveira, e outros artistas da casa - e fui a tempo de ver “nascer” o Marco Paulo para consumo interno…
Bem, falava de férias e da inveja que me corrói as entranhas pelo gozo com que os meus amigos ostentam o tom moreno trazido da praia, que para mim é uma chatice: areia em demasia, água salgada, ondas revoltas, sol, muito sol… calor! Praia de jeito é a que tem esplanadas, mesas e cadeiras confortáveis, cervejinhas bem frescas, e, já agora, uns camarões grelhados para desenjoar da bebida; se houver mar calmo e o reflexo da lua nas águas vier acompanhado do romantismo de companhia agradável e gentil, tanto melhor……
Recordo que o ano passado, por esta altura, sofri da mesma maleita; dados os factos passados e presentes, acho que sou portador de um “vírus crónico” que não se dá nada bem com este tempo… de férias.
-“Hoje estou em Tallinn ( capital da Estónia)” e estou a adorar… – escreve a Graça, para me “irritar”, só pode. Quando voltar, há-de contar tudo, tintim por tintim…

sábado, 14 de março de 2009

Piercings & mini saias


O deputado socialista Renato Sampaio é autor de um projecto-lei que, eventualmente, pode alterar a liberdade de quem pretende decorar parte do corpo com piercings. Como a saúde está primeiro, entende o deputado que deverá existir legislação adequada aos malefícios das tatuagens e similares, o que me parece bem …Confesso desconhecer pormenores sobre a matéria; verdade seja dita, não posso”querer saber tudo” porque se torna difícil conseguir captar todas as atenções - das que somos obrigados às outras, do estilo “'faits divers' ”. Portanto, a estória dos piercings e das tatuagens é coisa que não me dá pena, mas se o Governo entende por bem emitir Lei sobre o assunto, que o faça, está no seu direito.
Ora, factos são factos (a propósito: no acordo ortográfico luso brasileiro, o vocábulo «facto» fica como está – uma boa notícia para os puristas) e quanto a isso, nada a fazer: o IVA sempre vai baixar lá para o verão, o que pode significar melhoria de vida para os portugueses, na opinião do Primeiro Ministro, mas quanto aos piercings nada está decidido - uma péssima notícia para quem os usa ou pensa vir a usar, depois de legalizada a sua aplicação.
Escolhi este dois “factozinhos” por me parecer que não estão no mesmo pacote das coisas importantes - ou talvez estejam – para o português comum…
Acreditando que o projecto-lei tem pernas para andar, no futuro a quem competirá fiscalizar a aplicação dos pingentes? À ASAE? Pois, não se sabe, mas há-de ser giro o fiscal, depois de se identificar, claro, solicitar ao eventual “prevaricador” que mostre certas partes do corpo, por norma resguardadas no recato de um slip; a elas, que desça o decote e o soutien!…Se desce o decote, porque não subir a bainha da saia?
O “Público” online, a propósito de saias curtas, conta como a clínica espanhola San Rafael, em Cádis, espolia em alguns euros as suas funcionárias pelo simples facto destas não usarem mini-saia, como está estipulado no uso do uniforme obrigatório. As senhoras, enfim, recusaram o traje que, além de deixar as pernas descobertas, obriga ao uso de um avental justo e pouco prático – leio. Além disso, argumentam, sentem-se objectos decorativos; diz uma: – “quando estamos a trabalhar não temos liberdade de movimentos e não nos podemos baixar para atender doentes que estão acamados"...
Apesar dos nossos brandos costumes, acho que entre nós este tipo de farda jamais teria opositores (as), digo eu que sou do tempo do grande sucesso da mini-saia, inventada por Mary Quant dizem uns, outros dão a paternidade a Pacco Rabanne, a não ser que a proibição viesse de instâncias superiores, alicerçada no pudico desconchavo de alguns senhores…
Se a administração da clínica de Cádis entende que o uso da saia curta é um paliativo para os seus doentes, nada a opor -o efeito placebo, pelo menos, está garantido!
Quanto ao uso de piercings, nada consta…

Às voltas com a História



Depois de conjugar uma mão cheia de situações, decidi mudar de estilo e ritmo de vida, nada que os mais próximos não estivessem à espera, mais dia menos - foi agora, pela primavera, para “renascer” no novo ciclo da mãe Natureza.
A vantagem que retiro destes dias sem obrigação que se veja útil à comunidade, é poder ler horas a fio, ouvir música e andar por aí; confesso a ausência destes pequenos prazeres durante anos, mas agora tiro a desforra nestes três ou quatro dias de vento e chuva que são um “encanto” para os sentidos!
À cabeceira continua “Rio das Flores”, do Miguel Sousa Tavares. Vou a meio do livro, com algum custo porque é “chato” pela minúcia da (s) estórias (s); estava disposto a terminar agora a leitura da obra, mas alterei os planos quando dei de caras com outro livro, da autoria do conhecido e polémico José Hermano Saraiva: “História Concisa de Portugal”, datada de 1980.
Primeiro umas linhas… depois uma história, e cá vou “devorando” mais de trezentos e cinquenta páginas com o prazer inaudito do regresso às origens do País que somos.
É bem capaz de nem tudo ter acontecido como é relatado, porque “quem conta um conto, acrescenta um ponto”; que importância tem, afinal, por exemplo, conhecer o pormenor da morte do D. Sebastião? Morreu à paulada ou à espadeirada - está morto e não se fala mais nisso.
A importância do que é importante, a meu ver, reside na lenda da sua morte e do significado de um certo “sebastianismo” bacoco, de que as “profecias” do sapateiro Bandarra fizeram एको. As “profecias” ainda se comentam, e o “sebastianismo”, como certo ideal de esperança (?) num salvador (sabe-se lá de quê!) que há-de vir, não desapareceu de todo…
Além dos desgostos de Alcácer Quibir, a morte do rei português trouxe mais tarde os espanhóis à liça “em casa alheia”, e por cá se mantiveram por um ror de anos, até que “corremos” com eles; voltaram à carga umas quantas vezes mas, cansados da guerra, uns e outros, lá se decidiram pelo sossego. E ainda bem!
… Se assim não fosse, hoje seríamos mais uma “região” sob o domínio do rei Juan Carlos, possivelmente a lutar entre muros pela independência do País Portugal, como o País Basco o faz…
A propósito: leram ou ouviram atrasado que o Nobel da Literatura, José Saramago, defendeu a integração de Portugal em Espanha?
Pois…

sexta-feira, 6 de março de 2009

Monumento a quem merece

A proximidade afectiva torna suspeita a opinião que tenho do dono de certo bar da cidade. Diria até que estamos tão próximos que nos “confundimos” pelo riso de uma boa piada; como o grande poeta Mário de Sá Carneiro disse de si, “eu não sou eu nem sou o outro…”, enfim, daí esta confusão de personalidades que, bem vistas as coisas, nada tem de bizarro...
Ora, se pelo riso nos entendemos, quando a “graça tem piada”, foi esse o trejeito que me ficou dependurado após leitura apressada, depois vagarosamente repetida, da parte final do terceiro parágrafo da peça publicada pelo CBS na edição anterior, a propósito de uma praceta da cidade, onde, por coincidência, eu e o meu amigo, dono do tal bar, coexistimos de forma fraterna e solidária.
O corpo da notícia, na verdade, não justifica, a meu ver, o espaço desta croniqueta, mas o pequeno “pormenor” do presidente da edilidade de Oliveira do Hospital, num momento de saudável disposição, acrescentar à sua resposta, a propósito da necessidade da requalificação da tal praceta, onde eu e o meu amigo coexistimos pacificamente, insisto, a lapidar frase:”… a não ser que o senhor queira lá colocar um monumento aos frequentadores do Ritual Bar”, (como se isso constasse das ideias de quem propunha intervenção camarária), merece, pelo menos, um meio sorriso e um pequeno “devaneio” da minha parte, com a aquiescência do meu amigo, claro está…
A notícia é para ser lida no seu todo, por isso remeto os leitores para a dita – ficarão a conhecer as “causas” da ironia do presidente da edilidade oliveirense, como está escrito no CBS.
Imaginemos que a proposta incluía, além do corte dos arbustos e arranjo dos passeios, um monumento para embelezar a praceta (o que não seria de todo descabido, na pessoa do seu patrono, o poeta Manuel Cid Teles)…
Então, particularizar determinado estabelecimento comercial e os seus ilustres clientes (ilustres, digo bem – de outro modo não justificariam a “estátua”) seria uma atitude simpática, no meu modesto raciocínio, e reflectia a importância do mesmo em determinado contexto. No caso, com ou sem ironia, o presidente da edilidade do “meu concelho” por certo pretenderia exaltar uma mão cheia de actos culturais levados à prática no tal bar durante oito anos – oito –, que me dispenso de recordar por serem sobejamente “visíveis” aos olhos de quem quer ver, perante a presença de gente elegante no porte, de classes sociais díspares, atentas e respeitosas.
Tamanha honraria bem poderia ser aplicada, por inerência de atitudes semelhantes, a outros estabelecimentos similares e aos seus fiéis e cordatos clientes; eu e o meu amigo entendemos que o “sol quando nasce é para todos”: para uns, o aconchego do entretenimento espiritual pode ser um sarau de poesia, uma noite de boa música ou a contemplação de uma exposição de pintura; para outras, uma sessão de anedotas ou uma noitada de jogo de cartas, por exemplo, têm o mesmo efeito reparador das maleitas da alma. Por isso, a hipotética ideia (do monumento…), ainda que risonha, brejeira, irónica, sarcástica, pouco, muito ou nada séria, tem pernas para andar – os clientes merecem! Haja quem a proponha em letra de forma junto das competências devidas! Depois, logo se vê…
Enquanto me distraio com a escrita nesta ânsia indomável de escrevinhar coisa que mereça leitores – um que seja! – o meu amigo, coitado, faz de Villaret no “Cântico Negro”:
"Vem por aqui — dizem-me alguns com os olhos doces”
“ (…) Sei que não vou por aí”!
Entre o princípio e o fim do poema, fica o inconformismo do grande poeta José Régio.

Insónias e pesadelos

Vá lá saber-se porquê, uma noite destas tive uma insónia que me deixou mais cansado do que estava quando me deitei.Dei conta disso depois das voltas nos lençóis.
Como se não bastasse o corpo maçado, também a alma ficou dorida pelo corrupio de ideias que durante todo esse tempo afloraram à mente, coisas parvas, estúpidas, algumas sem sentido, mas eram ideias e pronto - guardei-as para descodificar em melhor ocasiãoTenho para mim que a falta de sono surgiu na sequência de um daqueles pesadelos de que quase nunca nos lembramos ao acordar; coisa boa, no mínimo razoável não terá sido...
Como é bom de imaginar, horas a fio naquele jeito incómodo de estar, deram-me a volta à cabeça. Ainda peguei num dos livros que tenho à cabeceira, “Rio das Flores”, de Miguel Sousa Tavares, mas a leitura não trouxe o resultado esperado; reconhece-se ao autor talento e qualidade na escrita e na palavra dita, mas este romance, a meu ver, peca pela minúcia de determinados relatos e esse pormenor enfadou-me, confesso.A propósito do título, quando o li, pareceu familiar. Pelas dúvidas, fiz uma busca (abençoada Internet!) e encontrei: Rio das Flores é nome de cidade brasileira, pertence ao município do Rio de Janeiro! Mera coincidência, dirão, também creio…
A propósito, o Brasil é um país que me seduz por múltiplas razões; “sei” de um colibri, passarito simpático, de bico esguio e ágil, que suga o néctar das flores pairando no ar com as asitas em frenética velocidade, como todos fazem; este rodopiou uma, duas, vezes, à volta da “primavera” e quase a beijou, como se fosse flor.Será – é! – uma imagem romântica, como outras que poderia surripiar da obra do poeta Mário Quintana, por exemplo, mas basta esta para ilustrar a poesia do gesto.
Obviamente, não é só o “beija-flor” que me fascina naquele país irmão Pouco amante da arte do samba, prefiro a dança do futebol, aprecio a paisagem “ africana” de que tenho saudade, e o quentinho do clima – outra saudade, agora ainda mais sentida pelo contraste do frio que vai fazendo por cá…
Volto à minha insónia.É fantástico como no “silêncio do escuro” se pensa de forma profunda nos afrontamentos da vida e nas “soluções” para os problemas que carregamos diariamente!Porém, quando vem a luz do dia, ou acendemos a lâmpada do candeeiro da mesinha de cabeceira, aquilo que parecia ter lógica, deixa de ter, e as soluções, quando muito não passam de hipóteses…remotas.Quero dizer que devemos estar em permanente escuridão quando se procuram decisões para os problemas de vária ordem e qualidade? Nada disso - é importante que tudo seja feito às claras, sob pena ficar alguma sombra incomodativa.Se há uma solução para determinado coisa que atrapalha, vamos a ela!
O pior é quando não se consegue enxergar uma luz ao fundo túnel e as insónias se confundem com pesadelos…Como sou um “sortudo” nestas coisas, ando por aí de “candeia acesa”, mas nada de avistar soluções para os meus achaques - só insónias e pesadelos.Hoje vou jogar no euromilhões!

Prazeres implícitos


Há dias em que baralho as ideias de tal forma que me obrigo a reflexão mais ou menos minuciosa. O mundo, na verdade, não fica de pernas para o ar pelo simples facto de um mortal assumir que em certas horas se confunde. No meu caso, o mundinho onde me movo, de tão pequeno, passa despercebido, mas quando tenho as ideias desordenadas, fica mesmo virado ao contrário, como aconteceu um dia destes quando folheava um diário desportivo, na ânsia de conhecer o projecto camachiano do meu Benfica.
Não li nada de novo e interessante, confesso, excepto um anúncio dos “classificados” onde determinada senhora oferecia os seus préstimos para acalmar o stress dos leitores.Em três linhas apresentava o seu currículo físico e deixava adivinhar nos três pontos do final do texto prazeres implícitos - o normal, com o pormenor acrescido de, dizia ela, ter sido namorada de um futebolista!
O reino da publicidade usa palavras “plebeias” que nos empurram para o consumo de determinado produto; no caso, o eventual facto da referida dama ter namorado com um fulano que ganha a vida ao chuto (numa bola), e isso representar mais valia no marketing do “artigo,” fez-me sorrir e imaginei, de seguida, a primeira página de certo tablóide nacional:“Fulana de tal, ex namorada do futebolista Y, assume-se como prostituta” – e acrescentaria o número do telemóvel para que pudessem ser confirmados “ao vivo e a cores” os prazeres que o rapaz da bola atirou às malvas!
Razão tem o “craque” Cristiano Ronaldo quando está (estará?) nas tintas para as parangonas do jornal The Sun que, com frequência, escreve sobre a sua vida privada - faltará relatar quantos “chutos”dá o moço na intimidade da sua mansão...
Um dia destes, por este andar, com o fito de arranjar parceiro, aparecem viúvas a publicitar as suas virtudes, e dos defuntos maridos, não por aquilo que construíram a dois durante o tempo de vida, mas pelos “segredos” que o cantor brasileiro Ney Matogrosso retrata numa das suas cantigas apimentadas:“É debaixo dos pano /Que a gente comete um engano/ Sem ninguém saber /É debaixo dos pano/Que a gente entra pelo cano /Sem ninguém ver"!

segunda-feira, 2 de março de 2009

"Miradouro da esperança"

Vou puxar a brasa à minha sardinha, com vossa licença…
Inaugurado em 1992 pelo então Secretário de Estado da Agricultura, Álvaro Amaro, o “Miradouro da Esperança” continua a desempenhar a missão para que foi construído: suster uma inestética barreira, sita na rua principal do meu sítio. Como lhe acrescentaram um passadiço com protecção física, mais ou menos a três quartos da altura, baptizaram-no de mirante, sinal de que dali se descortina horizonte suficiente para saciar a vista, o que não corresponde à verdade. Digamos que tem as “vistas curtas”, para o outro lado da rua, para cima, para baixo e para o alto…
Nunca questionei os autores da ideia sobre o pomposo título; os senhores desse tempo, no meu sítio, lá saberão da sua importância nacional, a ponto de merecer a honra presencial de um membro do Governo na hora de cortar a fita. Adiante – importa a obra que alindou o espaço, e o resto pertence às manigâncias político-partidárias –, nada a acrescentar perante a evidência da pompa e circunstância da inauguração, a que associo um pouco da “Procissão” de António Lopes Ribeiro, poema magistralmente interpretado por João Villaret: “…Na nossa aldeia, que Deus a proteja, já passou a procissão…”!
Nesse recuado ano, os anseios de alguns dos meus conterrâneos manifestaram-se através da construção de um paredão e do vocábulo esperança! Certamente profetizaram renovado futuro, e nada melhor do que a rigidez do betão para exprimirem, simbolicamente, sentimentos e desejos legítimos. Infelizmente, a aldeia desertifica-se de ano para ano e não se adivinham tempos de fartura. Essa “esperança” evaporou-se…
Por lá, no meu sítio, há casas reconstruídas por quem se apaixonou pela terra, e muitas, imensas casas decrépitas – retrato em sépia de uma realidade confrangedora. O “meu” rio, que agora transborda, no estio abandona-se no leito, mal se espreguiça, e deixou de ser a grande atracção turística pela ausência de caudal capaz de arrastar toda a espécie de porcaria para bem longe das margens. Junta-se ao Mondego perto de Penacova e perde a identidade a caminho do mar. Hoje fui visitá-lo de perto – assusta o turbilhão das águas revoltas! Junto à “ponte”, a roda de alcatruzes, continua quieta e presa ao eixo, que a há-de mover quando for o tempo de enfeitar a paisagem – utilidade prática é de somenos valor porque não há sementeiras a necessitarem dos seus serviços.
No “coração” da aldeia, a última filial dos Grandes Armazéns do Chiado morre devagar, e o mesmo acontece ao palacete da família Nunes dos Santos, fundadores dos célebres armazéns consumidos pelo fogo em 1988. A escola vai encerrar e os alunos serão transferidos para a vila vizinha, a escassos três quilómetros, segundo se diz.
Com vida própria, a sede da Associação Filarmónica é a imagem de um povo capaz de grandes gestos de solidariedade – até na manutenção da própria Banda de Música! A Casa do Povo foi transformada em Centro de Dia e, agora, nas traseiras, ergue-se obra de vulto que irá melhorar as condições da instituição – nem tudo é mau lá no Barril de Alva, de onde venho…
E pronto, disse, mas continuo pensativo e insisto na dúvida: sempre gostaria de saber se alguém já lobrigou do “miradouro” algum tipo de esperança...

O brinquedo de corcódea

À sombra do meu gostar

Era uma quinta enorme, com terreno de cultivo bordejado de macieiras.E tinha uma casa de arrumos onde guardava as minhas construções de corcódea; a última foi uma miniatura de um carro - de -bois ( o transporte da época para o renovo da quinta, onde se "dava de tudo", como se fala por aqui...).
Em fevereiro de um ano, as terras estavam de pousio e eu também, sem grandes quereres nos meus onze anos, mas fui de livre vontade até onde o navio me deixou, quase um mês depois do adeus a Lisboa.
Lourenço Marques era mesmo uma cidade linda, tão linda que me prendeu nos seus encantos - ainda morro de amores por ela!
Um dia, homem feito, regressei ao meu sítio e voltei à quinta, de visita...para procurar o meu carrinho de corcódea com duas rodas minusculas e umas figurinhas que em nada se assemalhavam a animais de carga, ainda por cima sem chifres - lembro-me muito bem do feitio da minha "escultura"!
Tinha a certeza de que a deixara numa prateleira, ao alcance da minha mão...mas a prateleira estava vazia!
...Regressei de nova viagem à quinta abandonada, onde agora crescem pinheiros bravos.
Da casa, duas meias paredes e, aberta numa delas, a prateleira "guarda a alma" do meu brinquedo...
"Amén"!

O presidente convida...


O correio trouxe uma carta sem remetente que me deixou intrigado por breves segundos. Abri o envelope, retirei o conteúdo que, ao contrário do suposto, não trazia más notícias...
Tratava-se de um simpático convite, em nome do presidente da Câmara Municipal de Oliveira de Oliveira do Hospital, para assistir a uma exposição de fotografia da artista Arlette Graven. Até aqui, tudo normal…
Com o pequeno rectângulo na mão, dei voltas e mais voltas à memória na tentativa de lembrar a ocasião em que havíamos trocado as nossas moradas, eu e o presidente, como acontece aos amigos quando se afastam uns dos outros pela conveniência de outras paragens. Desconheço o nome da rua e o número de polícia da sua porta, mas se ele, o presidente, conhece o meu sítio – o que não é difícil – fico encantado pela lembrança, mas não, eu e o presidente nunca fomos dessas “intimidades”…
Apesar de nos termos cruzados várias vezes, nunca fomos à fala, até naquele dia em que ele, o presidente, encostado ao balcão do café Portugal, com outra pessoa por perto, fez orelhas moucas às “boas tardes” que deixei no ar. Assim sendo, este convite só podia ter vindo por engano, ou então…
Percebi – finalmente! – que o pequeno rectângulo é uma espécie de circular que pode chegar a qualquer pessoa em qualquer canto do mundo, quer seja enviada por quem a subscreve ou por terceira pessoa, como deve ter sido o caso, e então já não estranho… a amabilidade da Arlette – foi ela a remetente, aposto.
Sei do que é capaz como “mulher dos sete ofícios”, é verdade, mas nunca a imaginei fotógrafa, capaz de retratar as emoções das suas viagens deste jeito bem apelativo para quem se limita a viajar em sonhos, como é o meu caso. Estou curioso.
Certamente nunca saberei se o presidente envia convites pessoais aos cidadãos que representa na Câmara, quer tenham votado na sua eleição ou não, mas como as eleições estão (quase) à porta, é bem possível que eu seja bafejado pelo apelo da obra feita, de modo a que, com mais um voto (o meu), ele dê continuidade à liderança da Autarquia – apesar das fortes críticas, dos seus pares mais chegados na vida partidária ao anónimo cidadão.
Nas suposições mais optimistas ele, o presidente, disputará as eleições daqui a um ano, mas como a aragem que sopra da Rua de São Caetano à Lapa se pode transformar em vento ciclónico, é bem capaz de haver novo líder no PSD daqui a uns tempos e lá se vai o eventual apoio da doutora Manuela.
Se assim for, não lamento a sorte do presidente em exercício, mas fico com pena por não receber na minha caixa do correio um envelope com um convite à reflexão na hora de desenhar uma cruz no boletim de voto – sempre queria ter o gosto de o “guardar” no melhor dos sítios que tenho junto à minha secretária…
Quanto à exposição da minha amiga Arlette, não vou perder a oportunidade – fica prometido!