segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Nem padre nem doutor



Passaram anos sobre o dia em que fui desterrado para um primeiro andar de uma casa sita na rua Dr. João Jacinto, em Coimbra, com a finalidade de, um dia, chegar a doutor, se para tal houvesse sabedoria.
A nobreza da intenção da família possivelmente foi abençoada pelo arcipreste Januário, pastor das almas da freguesia; porém, nem ele nem os meus tiveram o cuidado de conhecer os meus anseios -coisa pouca, devo acrescentar: queria ser padre para entoar a imperceptível ladainha da missa ao domingo e usar uma “saia” negra como o prior!
Tiraram-me daí o sentido com o argumento de que os padres não podiam casar e então, para não ter de inventar sobrinhas ou primas afastadas, o melhor era ser doutor de qualquer coisa e depois se veria com quem partilhar o aconchego da família oficial, que havia de ter…
Coimbra e o Liceu D. João III seriam, pois, o destino da criança que eu era. E lá fui, com medos e vergonhas a fazerem mossa na minha imatura e periclitante personalidade. Fui, mas regressei no fim do ano lectivo, vergado a um chumbo de “noves”, escrito a vermelho na pauta.
No ano seguinte, havia duas opções: o colégio de Oliveira do Hospital, afamado, ou o de Arganil, que não lhe ficava atrás nos resultados académicos. Escolheram por mim: Arganil –sempre havia carreira de manhã e à tarde, e ficava sob a alçada da família, que continuava a insistir no “doutor de qualquer coisa” - padre é que nem pensar!
As voltas que dei na vida afastaram-me, definitivamente, de todas as vontades e desejos.
Mais tarde, os ares de Abril trouxeram-me de regresso “à terra”, deixando para trás, contrariado, um pedaço de África, como se tivesse arrancado à força o sonho de…ser doutor – ou padre! - e voltei a Oliveira do Hospital a tempo de conhecer gente que, se a roda da fortuna tivesse girado noutro sentido, bem poderiam ter sido meus condiscípulos no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas. Agora ouço relatos de peripécias inarráveis em letra de forma, conheço estórias de sucesso, e sei da saudade com que alguns desses amigos recordam os tempos do “Brás”.
Naturalmente, graças à dedicação dos professores e ao rigor do ensino, o mítico Colégio é referência nacional de um tempo em que para se “ser doutor no liceu” não estava ao alcance de todas as bolsas e Coimbra, depois do tirocínio em Oliveira, com aproveitamento académico, era o melhor destino para se chegar ao almejado canudo.
Algum do espólio do “Brás” está, a partir de agora, reunido num documento único, posto à disposição de centenas de antigos alunos que, por certo, vão gostar de recuar nos anos ao passar o olhar pelas duzentas e noventa páginas do livro “Do Colégio Brás Garcia de Mascarenhas ao Externato de Oliveira do Hospital 1932 – 1973” , mesmo que não tenham chegado a “doutores”.
…Pena será se a obra não estiver à disposição dos leitores da Biblioteca Municipal, à semelhança de outras obras com o mesmo carácter histórico.
Por mim, nem padre nem doutor de qualquer coisa – continuo aprendiz pela “leitura do conhecimento” de mestres como o João Soares, o melhor contador de estórias que alguma vez conheci.

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