segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Exercício sobre dois búzios ( de Sophia de Mello Breyner)

O acaso devolveu-me à leitura de “Contos Exemplares”, de Sophia de Mello Breyner. O livro, que descobri numa arca no sótão, editado em 1971, tem as folhas amarelecidas pelo tempo - nunca as palavras imortais da autora.
Nesta edição (a 4ª), o então Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, assina o prefácio e é pela leitura das páginas que escreveu - mais de cinquenta! - que D. António nos remete para a excelência da obra de Sophia, apontando a sua enorme espiritualidade como referência a ter em conta.À genialidade do conhecimento de D. António Ferreira Gomes junte-se o talento da maior poetisa portuguesa, e ficamos com uma “peça rara” do nosso património cultural.
Qualquer português minimamente culto conhece alguma coisa de Sophia de Mello Breyner. Particularmente, creio que “A Viagem” é uma espécie de catecismo pelo facto de dimensionar a esperança de qualquer humano, entre o “Alfa e o Ómega”, até aos limites do quase impossível!Na estória de ficção, além do mais, a autora desenha poesia e poetiza a música das palavras, como sempre fez, com sensibillidade ímpar.Não admira que a saudade de si, por tudo quanto legou à Humanidade, regresse nas asas do tempo, como a excepcional voz da cantora brasileira Maria Bethânia deixa transparecer no álbum "Mar de Sophia", editado, salvo erro, o ano passado, onde o mar e os seus símbolos, a partir da poesia de Sophia de Mello Breyner, nos transportam para viagens de completo encantamento.Para meu regalo, a comunhão do belo (as palavras da Sophia na voz da Bethânia) chegou aos meus ouvidos numa tarde calma, bem longe do mar que a poetisa amava como se fosse coisa sua – somente sua!
A “minha serra” sempre foi o lugar perfeito para a poesia que me enche a alma – por vezes descubro por cá, no silêncio, oceanos de emoções que nem a morte há-de apagar da memória dos vivos!… E hei-de “voltar à minha serra”, como a Sophia ao seu mar:-“Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não passei ao pé do mar”!Ainda nos “Contos Exemplares”, num deles (Homero) a autora retrata “… um velho louco e vagabundo a quem chamam Búzio…”. Obviamente, o texto mantém o estilo e a arte poética de Sophia...
De novo e sempre o mar:-”O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas…”.Em Junho passado, depois das férias, conheci outro búzio: “ O Búzio de Cós e outros poemas” – novas imagens de outros mares que Sophia não precisa mencionar – basta uma simples e bela concha fusiforme e fica perfeito o cenário de Cós, ilha do mar Egeu, onde Sophia comprou o búzio “numa venda junto ao cais…”.
Às suas epopeias, Sophia de Mello Breyner, agrega dois búzios impregnados de simbologia que tocaram a minha sensibilidade: a um faltava o aconchego de uma “concha”: “ O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio...”; ao outro não ouvia “ … nem o marulho de Cós nem de Egina…”.
Por mais que me deleite nas marés dos seus poemas, fico sem saber quantos mares formam o caleidoscópio da áurea de Sophia de Mello Breyner…

Escrever claro


O tempo de vida que levo a falar e a escrever português vai longo.
Na escola primária fui a tempo de aprender que a palavra farmácia, por exemplo, se escreve como se lê e não com «ph» -pharmácia - como muito antigamente! Algumas reformas linguísticas, entretanto, aconteceram com naturalidade - nada comparável ao que está para vir a breve trecho, depois de ratificado pelas partes interessadas o acordo ortográfico luso-brasileiro.Li que vai existir uma adaptação vagarosa ao novo modo de escrever algumas palavras em português, o que é perfeitamente natural e normal; por aí ficamos todos descansados, sobretudo a gente nova, incluindo o Quico com dois anos, meu neto, e todas as crianças desta geração: têm uma vida inteira pela frente para aprender a escrever o “novo” português.
Um intelectual, dos que opinam com sabedoria coisas importantes para a História registar, disse e eu ouvi, que qualquer dia a língua portuguesa, tal qual é falada e escrita agora, fica restringida a um pequeno espaço físico rectangular, como se fosse um gueto europeu onde vivemos nós, os portugueses. O resto do mundo lusófono, simplesmente escreveria “brasileiro” – um exagero do senhor importante…
É reconhecido que a Pátria de Camões, Pessoa e tantos outros portugueses eruditos, cedeu bastante no acordo; não será, porém, pelo facto de desaparecer o acento circunflexo nas paroxítonas terminadas em «o» duplo («vôo» e «enjôo»), usado na ortografia do Brasil, ou escrever «úmido» em vez de húmido, que o português escrito deixa de ser a língua materna de mais de dez milhões de portugueses pelo nascimento ou adopção - «adoção», a partir de agora! Afiançar que só os mais “antigos” continuarão a escrever em português “arcaico”(?) é, repito, um exagero.
Faço questão de, aos poucos, criar hábitos de escrita, consonante com o novo acordo e não considero que passarei a escrever em “brasileiro”!De resto, como sabemos, sempre dançámos ao som do que vem de fora – até na língua pátria - é disso que se trata, com todos os estrangeirismos adicionados ao longo da História.
Se os países africanos onde reinámos durante séculos ainda estivessem sob jurisdição portuguesa, alguns vocábulos locais poderiam ser acrescentadas, pela frequência da sua utilização, e nem por isso se diria que a língua passava a ser angolana ou moçambicana.… Era giríssimo escrever em português de Portugal que determinada wansatai (mulher) ainda tombazana (rapariga) é maningue chunguila (muito bonita) – dialectos moçambicanos que em tempos passados se misturavam com a nossa língua, falada e escrita...
Esta semana vai ser posto à venda um novo dicionário da Língua Portuguesa, que inclui as alterações do acordo luso-brasileiro. Estou curioso…
Entretanto, ambanine (adeus), chega de bula-bula (conversa fiada): - “A minha Pátria é a língua portuguesa” (Fernando Pessoa) – com ou sem estrangeirismos!

Cegos, surdos e mudos

Esta manhã, já avançada nas horas, li os títulos da Imprensa nacional, cumprindo um dos rituais diários.Quando me agradam as notícias positivas, “entro” e leio; se me deixam curioso as parangonas deprimentes, “entro” e leio, mas se os títulos são inócuos, também “entro” e leio, nunca fiando, é que nem tudo o que parece é…
A facilidade com que dou a volta ao país, pela leitura, só é possível, é bom de ver, porque tenho Internet à distância de um click – uma maravilha da ciência que não dispenso.Quando se tem tempo para pensar devagar, como é o meu caso, as náuseas são mais do que muitas, face a tanta crise, despoletada pelo aumento do custo do petróleo – é o que dizem os especialistas, todos eles, sobretudo os políticos que, pelo facto de o serem, mesmo os mais incultos em matéria económica, arvoram-se em “opinadores” doutrinários, nós caímos na esparrela, acreditamos, e cá vamos “cantando e rindo”…Perante alguns desplantes de enorme arrogância cívica, o povo tem o direito de espernear, barafustar, refilar e pouco mais. Valha-nos isso, se possível para sempre – amén!Adiante.
O tempo por aqui, pelo meu sítio, vai sereno, o rio tem menos força na corrente, não tarda chegam os sedentos do sossego. As pessoas hão-de gozar férias, regadas com vinho e cerveja, cultivando a saudade com arrotos de bebedeiras e, depois, irão felizes porque ouviram a banda tocar ou deleitaram o olhar com as danças do folclore. Férias são férias!E assim se hão-de passar os dias, nesta aparente calmaria, entremeada com lamentos de churrasco,”… porque isto está mau, cada vez pior, só se fala de crise, ninguém sabe onde vamos parar, a sardinha está caríssima, agora nem se pode cortar um pinheirinho para aquecer o Inverno sem ter que dar conhecimento às autoridades…” – tudo por causa do nemátodo (uma praga voadora que veio dizimar a nossa riqueza florestal) - e por aí fora…
Este é um esboço da região onde estou inserido, não me atrevo a escalpelizar os males das outras, vizinhas ou nem tanto, já bastam os nossos, ainda que algumas maleitas sejam comuns, como é o caso concreto de alguns líderes que governam o poder local - os tais que, num repente, ficam doutorados em toda a linha do conhecimento, graças ao cargo que exercem.…É por isso que sempre “tive o sonho de ser”, no mínimo, autarca no meu sítio; bem tentei, mas o povo, soberano, achou que não era merecedor de tamanha honra, ofertando-me o lugar “pelos meus lindos olhos”.
Já que não cursei grau superior, ao menos, por essa via, bem podia ficar com a chancela de doutor ou “coronel”, à moda do sertão brasileiro de outros tempos, mas não – continuo sem poder dizer “coisas”, como o meu presidente de Junta…

"Lulu", a raposa


La fontaine por certo não teria desdenhado juntar às suas fábulas a estória da raposinha que vem todos os dias – e à hora (quase) certa, mais minuto menos minuto! – “jantar” ao restaurante “Vale dos Amores”, perto de Fiais, na freguesia de Ervedal da Beira.Se os “animais falassem”, seria curioso conhecer de “viva voz” o que vai na cabeça da raposinha para se entregar de “corpo e alma” à gentileza da sua presença, que já se tornou um hábito.O proprietário do restaurante, Humberto Cerejeira, conta como tudo começou:
-“ Eu e a minha mulher, há uns quatro meses, começámos a notar que o saco do lixo aparecia rasgado. Pensávamos que era obra de algum cão que andasse por aí, de noite, mas um dia a minha esposa viu a raposa perto daqui e não fez nada para a assustar; então, o animal foi aparecendo, dávamos restos de carne, e ela acostumou-se a nós”.
O Humberto, carinhosamente, baptizou-a de “Lulu”.No dia em que a reportagem do Correio da Beira Serra se deslocou ao Vale dos Amores, já a tarde caminhava para a noite, o restaurante tinha a esplanada bem composta de clientes, alguns deles, conhecedores da notícia, eram repetentes. A primeira surtida da raposinha tinha acontecido minutos antes, mas ficou a promessa do Humberto que “… não tarda por aí, é uma questão de esperarem um pouco mais, porque ela pega no pedaço de carne e vai, possivelmente, esconder, nunca come perto de nós…”.Na verdade, daí a nada, os clientes mais atentos viram-na chegar; fez uma pausa a uns metros de distância, e como ninguém lhe fez negaças, aproximou-se devagar, orelhas levantadas e o olhar atento ao mais pequeno movimento.
-“Lulu”, toma – diz o Humberto – e o animal, sem pressas, aproximou-se por entre as mesas, abocanhou o seu quinhão de carne, e voltou, nas calmas, pelo mesmo caminho.A cena repetiu-se várias vezes, mesmo quando a ração era entregue por uma criança. Por vezes ficava parada perto da esplanada, como se esperasse que o “padrinho” a “convidasse” a entrar – só ele e a mais ninguém a raposinha “respondia”.Numa floreira alta que fica perto, o Humberto escondeu um pedaço de carne; ela aproximou-se, um pequeno salto, farejou e… lá vai ela com o “petisco”!
-"Não pensem que a “Lulu” come de tudo, tem o gosto refinado – comenta o Humberto – pão, só se tiver manteiga, não gosta de sardinhas assadas, prefere carne, mas do que ela gosta mais é de camarão”!
O animal é, como se calcula, uma atracção no restaurante. Como mais vale prevenir do que remediar, foi desparasitada e já “…falei com o médico veterinário para ver se a conseguimos vacinar e colocar-lhe uma coleira”, acrescenta o Humberto que, a talhe de foice, sempre vai passando palavra aos vizinhos – não vá alguém ter a infeliz ideia de fazer uma espera à “Lulu, de caçadeira na mão…
(...) O “padrinho” tornou-se responsável por ela, cativou-a, como na estória do “Principezinho”, de Saint-Exupéry.
-“ Lulu, toma”!

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

"A última aula” de Randy Pausch




Se me perguntarem se sou feliz, respondo com naturalidade: sim e não – tudo depende do momento em que a pergunta é feita.
Não é necessária definição filosófica para termos a consciência do nosso estado de alma: contentamento, sensação de bem-estar, prazer, e um sem número de nadas que consubstanciam as emoções. Sendo certo que a felicidade chega sempre em pequenas doses e pelas mais diferenciadas vias, quando menos se espera…bate à porta: “…será chuva? Será gente? Gente não é certamente e a chuva não bate assim…” – Augusto Gil.
Nem é vento com certeza…” mas pode ser a felicidade porque tem um “bater” suave e inebriante, assim:
Decide-se um primeiro encontro e, a páginas tantas, descobrem-se empatias nos olhares que sobram de cada conversa…
Espera-se o conhecimento das feições da pessoa que se adivinha espiritual e sensível na poesia das palavras que junta – o momento de satisfazer a curiosidade é sublime!...
Se “ela” diz que sim, como canta o poeta Viriato da Cruz no “Namoro” (que não me canso de citar!), aquele instante é divino…
A visita inesperada, o aumento de ordenado, uma agradável conversa, um opíparo jantar, uma noite de amor, o nascimento de um filho, … quanta felicidade – até no gesto de um cativante sorriso!
Há, pois, em cada dia – mesmo que a vida se mostre “madrasta” – segundos de prazer que não contabilizamos por manifesta ganância: foi pouco, quase nada – queríamos mais, quase tudo, um “jackpot” constante e permanente!
Se me perguntassem sobre a última vez em que fui feliz, diria: há pouco, quando li um belíssimo texto, embora curto, escrito na sombra do anonimato. Estou como certo sujeito que ia ouvir a “Flauta Mágica” de Mozart e abandonava a sala de seguida: ficava “saciado” para o resto do serão – assim estou eu neste principio de noite…
Pensando bem… continuo moderadamente feliz porque a dor que tinha nas costas já não me apoquenta, a música que ouço “descansa-me” em absoluto, há pouco espreitei pela janela e vi o céu estrelado, o chá de cidreira fumega na chávena, e daqui a nada tentarei adormecer depois de ler umas quantas páginas de um dos livros que tenho à cabeceira, talvez…“A última aula”, de Randy Pausch.
Dizer que estou “moderadamente feliz” implica assumir que, apesar de tudo, alguns pensamentos preocupantes estão adormecidos e talvez despertem, “travestidos em fantasmas”, antes do primeiro sono. Se isso acontecer, conto carneiros – dizem que é remédio santo para adormecer –, é melhor do que somar fantasmas. Acordar depois de uma noite de sobressaltos, não augura nada de bom para as primeiras horas do dia seguinte, o que não impede de sonhar com um bonito dia, mesmo que o céu esteja tapado por nuvens negras e a chuva persista, teimosa…
Não podemos escolher as cartas que nos são distribuídas, a nossa liberdade reside em saber jogá-las” – Randy Pausch, professor de Ciência Computacional.
Morreu no dia 25 Julho, 2008, com 46 anos, vítima de um cancro no pâncreas
Aconselho vivamente a leitura da “ A última aula”.
… E, por favor, sejam felizes.

O amigo alentejano





Os tempos vão maus, demasiado maus, queixamo-nos em grupo, carpimos mágoas unidos, juntinhos, como os pinguins no Árctico para suportar melhor as tempestades.
Os sorrisos são quase nenhuns, vive-se, sobrevive-se, não há humor de gargalhar; para além dos “Gato Fedorento” é (quase) o deserto – apenas meios sorrisos com “Os Contemporâneos”, o Herman José não escapou à crise e sobram algumas graças do Fernando Mendes no “Preço Certo” – e isso é preocupante.
Não somos um povo alegre, mesmo no Carnaval “abrasileirado”, que está por dias, mas temos queda para associar estórias ao anedotário nacional, mesmo agora, em tempos de crise. Valha-nos isso!
O meu amigo alentejano Davide (com e no fim…), de sotaque a preceito, é excelente contador de anedotas; algumas têm “barbas”, mas como faz a festa por inteiro, do princípio ao fim, sempre a rir e com gestos largos (é um homem sem “crises” - será?), as piadas cheiram a novo. Agora perdi-o de vista, não aparece nas tertúlias que por hábito frequentávamos – o frio da noite leva a “malta” da ESTGOH a recolher cedo (tem dias…) e o alentejano, possivelmente, está em estágio… para os exames! É bom de ver que este amigo é estudante do ensino superior e já me garantiu que há-de voltar para terras de Amareleja com o “canudo” na mão – não duvido que o faça!
O jeitinho para actor é inato; se eu “mandasse”, fazia do Davide um profissional à altura da melhor concorrência do Stand Up Comedy nacional!...
Não é por nada – minto, é por causa das crises! – mas estamos necessitados de sessões de humor que aliviem a penúria da tristeza, mas não há volta a dar ao estado dos sorrisos. Convenhamos, em suma, que rir faz bem à saúde e, li há pouco, pode ajudar a curar certas doenças e aumentar a esperança média de vida, o que é óptimo, a não ser que a pessoa com vontade de viver mais uns anitos esteja às portas da reforma; nesse caso fique sabendo que os pensionistas vão perder um quinto da dita (reforma) até 2050 – quanto maior for a esperança média de vida, menor será o valor da reforma!
Perante factos, quem tem vontade de sorrir, rir ou gargalhar?
Nada a fazer, a Lei “diz que é assim” e… pronto.
Resta o exercício de “estar vivo”, que, só por si, já é uma “dificuldade” que nem sempre temos capacidade para gerir a contento,
…Com urgência, tenho de localizar o meu amigo da Amareleja para ficar ao corrente das últimas anedotas.

No cu de judas



Os militantes socialistas do distrito de Coimbra tiveram no fim-de-semana que passou a sua “reentré política” para o período que aí vem, em 2009.O Partido foi a votos para escolher o líder distrital; venceu quem detinha as rédeas do poder, o que significa dizer que (quase) tudo ficou como dantes.
Este “quase” tem a força que o povo (do PS) lhe quiser transmitir, mas não belisca nem um pouco a vitória de Vítor Baptista – um homem do aparelho partidário no exercício de vários cargos públicos – mas alerta para um próximo futuro que se adivinha com alguma “fricção” entre o vencedor e o vencido, Mário Ruivo, possivelmente coisitas de somenos, entre palavras de ocasião menos simpáticas e as recordações do que foi a campanha para o acto eleitoral.
Adiante que se faz tarde, o que está feito, feito está. Parabéns aos dois concorrentes pelo empenho com que se entregaram à luta democrática, no entanto, aqui para nós: era necessária tamanha correria desenfreada dos dois oponentes até à recta final, no dia de sábado, entre almoços e jantares, jornais de campanha, cartas, mensagens, etc, etc?
Os militantes menos avisados ficaram estupefactos perante a parafernália com que foram obsequiados, não pelo facto de ser invulgar esta luta pelo poder, mas pelo momento em que as eleições tiveram lugar. O tempo é de crise generalizada e não há indícios de melhoras a curto praz; mesmo assim, pelo exemplo que me ocupa as ideias, não se olhou a meios para se alcançar determinado fim que, de novo aqui para nós, não julgava TÃO importante na vida do Distrito.”Erro meu, má fortuna” a modéstia da minha ignorância, incapaz de perscrutar o horizonte, lá longe… tão longe que parece ficar no “cu de judas”!
As “conversas” (no caso, um monólogo pouco teatral como se impõe), mesmo quando escritas, são como as cerejas, daí que volte um pouco atrás para apresentar aos eventuais leitores uma localidade que foi baptizada exactamente como Cu de Judas. Fica nos Açores, arquipélago que ainda recentemente andou em bolandas com as eleições para o Governo local. Ganhou o representante do PS, Carlos César, que já exercia o poder, como Vítor Baptista em Coimbra.
Portanto, cá como lá, nos Açores, talvez até no Cu de Judas, não houve “mudança na continuidade” de todas a s virtudes e defeitos de quem repete lideranças.
Tenho para mim que as vitórias de Carlos César e Vítor Baptista são uma mera coincidência… ou não?
Na dúvida, aconselho o engenheiro Sócrates a consultar as cartas da Maya, os búzios do professor Bambo e outros amuletos de “adivinhos” afamados porque a “grande corrida” para a liderança do País já teve dois “pequenos prémios”…
A crise é que vai ser o pior de todas as campanhas, digo eu…
”Erro meu, má fortuna” a modéstia da minha ignorância, incapaz de perscrutar o horizonte, lá longe… tão longe que parece ficar no “cu de judas”!




“Espere em silêncio"…tranquilamente



O passaroco (mocho?) em relevo, pousado num galho, faz parte dos cartazes estrategicamente colocados na sala de espera e junto ao guichet das consultas de cardiologia, nos HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra).
A legenda (do cartaz) “Espere em silêncio…tranquilamente”, não pode ser considerada uma ordem, nem anuncia espera longa, apenas sugere tranquilidade e boca calada.
Quem tem alguma maleita cardiovascular, deve procurar estar calmo, por isso, a sugestão é uma espécie de placebo bem aceite, creio, pela maioria dos utentes.
Naquele segunda-feira, a funcionária, ao “postigo”, quando fazia a minha inscrição, não foi de modas no aviso: o “meu” médico deixara de dar consultas e o substituto, como estava doente, não vinha naquele dia! Tinha duas soluções: ou regressava a casa e marcava atendimento para outro dia, longe no tempo, ou esperava e era recebido por outro médico depois ter passado em revista os “seus” doentes. Decidi esperar, “mas olhe que vai demorar bastante tempo a ser atendido”, disse a funcionária; “o que quer dizer com bastante tempo”?, perguntei – “umas horas”, respondeu com ar resignado.
Se tinha de ser assim, paciência, decidi-me pela espera em silêncio, tranquilamente…
Nos trezentos minutos, bem contados, que se seguiram, li todos os jornais que estavam espalhados pelas cadeiras, sempre de boca calada e com a tranquilidade que a situação exigia; depois, desci tranquilamente pela escadaria interior até ao rés-do-chão e fiquei quieto num sofá por tempo “infinito”.
Não faço ideia de quantos “malucos”, como eu, ocupavam o seu tempo de espera naquela pose contemplativa tradicional: pernas cruzadas, braços sobre os joelhos e o olhar atento a quem passava.
As pessoas, na sua maioria, traziam o passo acelerado, sinal de que estavam com pressa de chegar a algum sítio. Jovens licenciados, de bata branca e estetoscópio sobre o pescoço, cruzavam-se com gente humilde no trajar, um pouco perdida na confusão de quem conhece os cantos à casa; os delegados de informação médica faziam realçar a sua condição de mensageiros, elegantes nos fatos, de pastas recheadas de publicidade numa das mãos; seguranças e oficiais dos serviços de limpeza cuidavam das suas missões com esmero…
No enorme átrio da entrada principal não há cartazes a sugerir silêncio e tranquilidade; mesmo assim as conversas eram calmas e (aparentemente) tranquilas.
Cansado do entretêm a que me tinha proposto, subi ao terceiro piso.
“Ainda é cedo”, disse a funcionária que se preparava para terminar o dia de trabalho. Continuei a espera em curtos passeios pelo corredor…
Por volta das 5 da tarde – finalmente! – abriu-se a porta de um dos gabinetes, saiu de lá um sujeito com ar satisfeito, uma voz feminina chamou pelo meu nome e eu, ao entrar, disse “ boa tarde”, talvez com cara sisuda, daí que o sorriso da jovem médica, que acompanhou a retribuição do cumprimento, me tivesse devolvido a tranquilidade que, confesso, já era pouca….
Depois, vieram as (inesperadas) palavras que pacificaram por completo a minha consciência: “peço desculpa por ter esperado tanto tempo…”.
Perante atitudes de educação e respeito deste quilate - para que conste - não podia deixar de trazer a doutora Elisabete à ribalta desta despretensiosa croniqueta.
Há dias assim, com pormenores de gentileza e sorrisos a condizer…

Da lousa ao Magalhães



Com a reabertura das escolas, há um novo cíclico na aprendizagem das coisas com que os jovens hão-de enfrentar o mundo – um enorme mercado onde (quase) tudo se compra.
Por ora, a festa está para durar durante mais uns tempos porque a alegria de quem reencontra amigos e colegas de faixas etárias semelhantes é contagiante. O conhecimento virá depois, durante meses de cansaço intelectual até atingir a meta no próximo Verão
Debruço-me com alguma nostalgia sobre as descobertas dos mais pequenos no 1º ciclo (ex escola primária); às novas matérias juntam-se as brincadeiras que fazem de cada intervalo um momento único: à falta do pião e das corridas dos “arcos”, inventam-se outros jogos, mas a bola e a “macaca” continuam a fazer parte da lista que todos soletrámos no tempo certo…
A ocupação dos “intervalos” das aulas acompanhou a evolução das mesmas, já não há o papaguear dos rios e afluentes, das linhas-férreas e ramais, e até “cantar a tabuada” caiu em desuso, para o bem e para o mal na aprendizagem das “contas”. A professora Georgina, por exemplo, levava tudo muito a sério, e ai de quem não tivesse na ponta da língua “quantos eram 9 x8”!
A “minha” escola, por onde passaram milhares de alunos, continua de pé: uma sala de aula de cada lado, e ao centro a residência dos professores, encimada por um varandim em ferro que servia de púlpito à mestra nos intervalos mais prolongados:
-Meninos, pouco barulho, já lá para dentro!
E nós, claro, obedecíamos porque tínhamos nos ouvidos os sons da régua quando vinha lá do alto “descansar” nas palmas das nossas mãos…
As “contas” eram feitas na “pedra” (lousa) com um lápis da mesma matéria, e no fundo da sala havia um mapa de Portugal para onde nos dirigíamos quando a professora assim o entendia.”Ir ao mapa ou ao quadro” deixava os alunos com tremedeira nas pernas porque a professora Georgina fazia-se acompanhar por uma “vara da índia”…para apontar e “espantar a ignorância” das nossas cabeças.
Uma vez, na quarta classe, confundi os feitos heróicos de Vasco da Gama e Fernão de Magalhães; o castigo não se fez esperar como era moda, por isso deixei de “ver com bons olhos” estas duas figuras dos mares nunca dantes navegados. Passado meio século, eis que um deles, o “Magalhães”, passa a ser motivo de conversa em tudo quanto é sítio, só que desta vez não me apanhou desprevenido: tenho um Toshiba, de quem é “primo”, e agora já não confundo as aventuras dos dois mestres marinheiros – o Google está ao alcance de um “click” e a resposta vem de imediato!
Se a professora Georgina fosse viva, apesar de rezinga, a sua competência de mestre-escola estaria à altura de utilizar as novas tecnologias em benefício dos alunos – disso tenho a certeza! - e eu, quem sabe, teria ido além da Taprobana se tivesse um “Magalhães” à disposição…
Agora (como antes, mas de outra forma…) não há desculpas para ir mais longe “ sem sair de casa”! Portanto, façam o favor de viajar na nova “caravela portuguesa” na companhia das vossas crianças, com estas ao leme.

Posso ajudar?



Por forças das circunstâncias, no meu local de trabalho, tenho oportunidade de olhar determinados comportamentos humanos de um ângulo privilegiado. Os jovens, na ânsia de emancipação precoce, são excelentes alvos de análises rápidas, mas falíveis, e eu, como qualquer adulto de horizontes mais latos, entretenho-me a meditar sobre o que os meus olhos vêm.
Há coisinhas miúdas no modo de estar de alguns jovens que me desagradam em absoluto. Mas também recebo ensinamentos de outros, que considero exemplares pelo seu altruísmo. Mesmo nos seus relacionamentos amorosos, as diferenças são notórias – depende do grau de educação e dos exemplos que tomam para si.
Não importa eivar esta croniqueta com lamúrias estéreis, visto que as coisas são o que são, aqui ou na China, e as excepções só podem ser entendidas pela via do obscurantismo, seja ele religioso ou pagão.
Por outro lado, aprendi com o Mestre Fernando Vale uma verdade insofismável: os graus de decadência que a Humanidade atingiu são tão elevadas que o futuro só pode ser melhor – nunca pior do que está!
Poderão parecer um contra-senso os dois últimos parágrafos, mas não creio que falte coerência aos raciocínios de que faço fé: o primeiro é a mera constatação de uma realidade que o segundo reconhece e “imagina ser passível de mudança”; como se processará essa mudança, não se sabe…
Este longo intróito vem a propósito de um pequeno conto onde se procura retratar uma certa inocência implícita (ontem como hoje?), com duas passagens curiosas: a assunção da timidez em certa fase da adolescência (ontem como hoje, apesar de tudo), e o modo “esperto” como o protagonista (eu!) procurou aproximar-se da “sua amada”.

A Mariana trabalhava na Livraria Académica e usava os cabelos compridos.
Perdi o conto às visitas que fiz à livraria, na esperança de ser ela a ouvir os meus pedidos de coisas simples: lápis, borrachas, papel cavalinho, aguarelas...
Quando não estava necessitado de nada, teimava em continuar cliente de leituras, embora curtas. Foi assim que conheci Mário Sá Carneiro, António Botto, Alves Redol e tantos outros autores portugueses
A estratégia era simples: para que a Mariana viesse ter comigo, entrava na loja e ia direitinho à estante das obras menos procuradas. E ela vinha, mesmo depois de se ter apercebido da marosca, com um sorriso malandro.
- Posso ajudar?
Poder, podia, mas a ajuda necessária não tinha nada a ver com esclarecimentos sobre as obras expostas. Talvez se falasse do tempo que fazia lá fora, do single musical em voga ou de qualquer coisa que me fizesse ganhar coragem, eu teria saído do canto da minha timidez e declarava-me... "apaixonado"!
A Mariana foi sempre muito profissional no seu papel de balconista e nunca passou do cumprimento de circunstância e da frase sempre igual:
-Posso ajudar!
Eu, como não tinha asas para voar para outras conversas, fiquei cativo da timidez e ela nunca soube da minha "paixoneta"... adolescente.

“Pavarotti” de penas


Forçado ao repouso, procuro cumprir com algum rigor a abstinência ao trabalho e às conversas longas; a dieta alimentar é sensaborona, mas o que mais me cansa, é estar de costas direitas, à espera que o tempo passe. A inércia nunca fez parte dos meus hábitos, mas como a ordem veio de cima, do médico que me assistiu nos HUC, faço-lhe a vontade, na esperança, como disse, de continuar por cá por mais uns tempos – sempre acontecem coisas novas, se não houver sabedoria, que haja conhecimento!
Na aldeia onde me “refugiei”, o tempo parece mais vagaroso, por isso deixo o olhar perder-se no horizonte, visto do meu quintal: mimosas “perna-longas” de um lado, casas velhas desabitadas à minha frente, do outro lado, lá longe, um monte coberto de pinheiros, e atrás de mim a sombra da casa resguarda-me do calor primaveril.
No relvado, um melro anda aos saltinhos e em silêncio (e se é bonito o seu cantar!); faço um pequeno gesto, levanta voo e esconde-se na selva que invadiu o quintal do vizinho. Às mimosas, juntaram-se as silvas e arbustos que não conheço, cobrindo por completo as oliveiras.
O melro deve ter o ninho nesta mata impenetrável…
Os pesticidas que os meus conterrâneos usam nos ataques às pragas e ervas daninhas -uma boa infusão de urtigas resolvia, não é “mestre” Zeferino? - afugentou os pintassilgos que, noutros tempos, festejavam a Primavera com acordes de uma sinfonia, em homenagem à mãe Natureza.
Uma vez, aqui perto, descobri um ninho destes passarinhos… Espreitei e vi três ovinhos de cor creme, pintalgados de cinzento. Dei tempo ao tempo e acompanhei a eclosão da ninhada.
Quando o vizinho (habituado a ir “aos ninhos” desde miúdo, coisa que nunca fiz…) entendeu que tinha chegado a hora da transferência, fez-se a mudança para uma gaiola, na esperança de que os pais, segundo ele, os alimentassem; estes, coitados, não gostaram que tivéssemos interferido na educação dos filhotes, por isso manifestaram-se de forma “ruidosa”, sem se aproximarem da prisão, o que me deixou preocupado e mais, do que isso, bastante incomodado.
Nem uma hora durou o martírio, porque, com paciência e jeito, devolvi os bebés à “casa” onde nasceram – felizmente sem consequências graves. Dias depois, a família estava junta nos ramos da oliveira.
Nesse dia, decidi que não voltaria a cercear a liberdade a nenhum animal que estivesse habituado à liberdade.
Para que a gaiola de grade brancas não ficasse vazia, comprei um canário de cor amarela – um autêntico tenor pela qualidade e pujança do canto!Agora, são dois os cantores que tenho na sala, cada um na sua gaiola.
O mais atrevido é jovem e irrequieto; nunca lhe dei nome de gente, o que não aconteceu com o “Pavarotti” que habita a gaiola do rés-do-chão – baptizado com propósito pela Acácia, à saída da loja da especialidade.
Um dia a Acácia decidiu que dois gatos não eram, de facto, a melhor companhia para o cantor de penas, ainda que este estivesse a salvo das arremetidas dos felinos, e pediu-me para o trazer para o meu "jardim de entrada".
As vidas do “Pavarotti” e do seu companheiro tenor eram tranquilas, pareciam “felizes” no cativeiro e as pessoas deliciavam-se com as “cantigas ao desafio”.
Depois a Acácia veio com uma novidade afiada na ponta da língua e quebrou em estilhaços o laço de cristal “Lalique” que prendia os sentimentos de ambos. Nessa hora, a sorte do “Pavarotti” ficou traçada: não voltaria à varanda do terceiro andar!
Agora canta só para mim.

O derriço



Dou voltas à cabeça e da memória não sai coisa que se veja.
Francamente, isto vai de mal a pior, mas enfim, os neurónios talvez melhorem com mezinha de boticário caseiro. É que há coisas miúdas que não recordo, paciência, mas lá bem no fundo, ainda existe uma vaga ideia de quem foi o meu primeiro derriço…
Assumido o estado psíquico, digo ao que venho: sei de uma canção escrita pelo poeta angolano Viriato da Cruz, musicada pelo Fausto, e interpretada superiormente pelo Sérgio Godinho, a que foi dado o título “O Namoro” em 1976.
O poema leva-nos a um tempo difícil para os namoricos envergonhados. Nessas situações, um pequeno cartão, onde estava escrita uma frase romântica, e num dos cantos, em letras gorda, a palavra NÃO e no outro a palavra SIM, era o meio eficaz para levar ao conhecimento do “amor da nossa vida” as honestas intenções de uma paixão adolescente.
Quando o cartão retornava às mãos do emissor, imagine-se a ansiedade com que se abria o pequeno envelope!
Este método “sofisticado” de pedir namoro caiu em desuso e deu lugar a imaginações mais subtis pouco relevantes para a croniqueta. Hoje, os jovens, não namoram – “curtem”! Os telemóveis substituíram, (com vantagem) os cartões do poeta Viriato, e namorar a “sério” é para os mais velhos, depois de se passar por alguns períodos de “curtição” e de relações mais ou menos intensas com os “amigos coloridos”.Há excepções, obviamente…
Não há comparação possível entre estes dois tempos nem importa esse jogo de memória.
“No outro tempo”, um namoro supunha casório na Igreja, flor de laranjeira e vestido (da noiva) alvo como a neve. Esse período nunca era demasiado longo, por razões óbvias…
Chegados à decisão final, com a bênção dos progenitores e algum dinheiro para os primeiros gastos, arranjava-se casa onde se acomodava o essencial; o resto vinha com o tempo e a disponibilidade económica do jovem casal. E assim se construía o “ninho”, a pulso e a dois, para que fizesse fé o voto de ajuda mútua, na tristeza e na alegria, etc e tal…
“Neste tempo”, o namoro pode ter anos de avanços e recuos, por norma com a intenção (importante!) de se conhecerem feitios e personalidades, e o “ninho”, a ser construído, terá recheio capaz de proporcionar uma vida a dois facilitada no mais pequeno pormenor. Simples!
O modo muito aligeirado com que falo do namoro, sem ter a veleidade de tirar quaisquer conclusões, talvez deixe perceber que, enquanto instituição social, está em crise. Não está, felizmente - continua-se a namorar (ou a “curtir-se”!), consoante os rituais herdados.
Esse tempo ainda é um “tempo de engano” (porque se esconde, por norma, da pessoa amada um ou outro aspecto da personalidade, ou porque se fingem características que não fazem parte dos seus valores morais e intelectuais – sempre na melhor das intenções: não perder a “alma gémea” que se julga ter encontrado).
Apesar de tudo, continua a ser um tempo de encantamento e ilusão, emoções, cedências e sensações únicas…
Quando o “barco do amor” inicia a viagem, acreditamos que o cais do destino será sempre um porto seguro. Mas se o derriço se apaga, o naufrágio é catastrófico.
Dito isto, “namorar é preciso”antes, durante e depois da tempestade.
Haja com quem!

Fernando Vale e Miguel Torga de “braço dado”




Foi necessário deslocar-me às instalações da Santa Casa da Misericórdia de Arganil - o que nunca fizera antes, apesar das inúmeras viagens que, em tempos, me proporcionaram conhecimento profundo da Vila e das pessoas com quem partilhei ensinamentos e experiências inesquecíveis.
O tempo de espera para uma conversa com figura proeminente da Medicina foi suficiente para um pequeno passeio pelas instalações da Instituição; vi obra recente, alterações arquitectónicas que redimensionaram espaços, e até o busto do Dr. Fernando Vale mudou de sítio, embora se mantenha visível em espaço digno. Não fui adiante, porque a memória “disse” para ficar e olhar – olhei!
O tempo de meditação foi curto, mas a imagem daquela figura que conheci de perto e me honrou com amizade fraterna, acompanhou-me pelo resto da tarde.
À esquerda de quem entra no Hospital, continua exposto o consultório de outro ilustre cidadão, de seu nome Adolfo Rocha, médico de outros tempos, de quem a História pouco diz, mas eleva às alturas do sublime quando acrescenta o pseudónimo de Miguel Torga. Outra pausa na viagem e deixei-me estar, mirando com minúcia os objectos.
Desfiz-me do consultório.Mil circunstâncias adversas conjugaram-se nesse sentido. E adeus meu velho reduto onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta. Ofereci o material cirúrgico ao Hospital da Misericórdia (de Arganil) onde durante anos operei, e o mobiliário à Junta de Freguesia de S. Martinho” – escreveu Torga em Junho de 1992.
Fernando Vale e Miguel Torga - ali, quase de “braço dado”…
Do que conheço da obra do Torga, partilho com a “minha verdade” a sua opinião sobre o Homem, que diz ser “…por desgraça, uma solidão: nascemos sós, vivemos sós e morremos sós”! Revejo-me nesta frase e numa outra onde retrata o beirão (que também sou, de peito aberto aos ventos que sopram da serra do Açor), como teimoso e cabeçudo!
De Fernando Vale recordo anos, (apesar de poucos - é sempre pouco o tempo que os Mestres nos concedem!), e momentos passados na sua casa de Coja, onde eu (e os outros…), de pé e à ordem, atentamente, aprendíamos os segredos da palavra perdida, e desenvolvíamos o espírito de modo a construirmos, cada um por si, o templo interior da tolerância e da fraternidade.
Por vezes, na sala onde nos recebia, a meio da conversa, se havia incertezas, o Mestre, delicadamente, pedia: “…por favor, naquela prateleira, não se importa de me trazer o livro (…)” – e a dúvida morria naquele instante!
Por ali, tudo parecia justo e perfeito, cada coisa no seu lugar, cada lugar para cada coisa, que tanto podia ser um livro, jornais, documentos - um autêntico acervo de “sabedoria com alma”.
Vezes sem conta, imaginei-me sentado na cadeira usada por Miguel Torga, Moura Pinto, Edmundo Pedro, Soares…
No pátio interior, a videira que Torga plantou em 1954, continuava viçosa…

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Aquilino Ribeiro e Alves Redol – os “novos” escritores




Constantino Cara-Linda, “cantigas” ou “cuco”, dependia de quem o interpelava, foi moço do Freixial, lá para as bandas de Vila Franca de Xira, e inspirou Alves Redol, de quem foi vizinho e amigo.
A sensibilidade do escritor deu forma à estória de “Constantino – guardador de vacas e de sonhos”, obra literária onde voltei a encontrar o povo ribeirinho de Vila Franca, como acontecera em “Fanga” e na “Barca dos sete lemes”; os dois primeiros tenho-os à mão, embora lá por casa existam mais uns quantos do mesmo autor.
Quando comprei o livro “Constantino…” (não recordo a data), já a obra ia na sétima edição, e “Fanga”, em 1963, contava com seis!
(Hei-de voltar lá mais para diante ao Constantino Cara – Linda, o “cuco rambóia”; por ora fico-me pela opinião modesta que desejo partilhar, a propósito de outro vulto enorme das letras e que por estes dias mereceu justa homenagem: Aquilino Ribeiro).
Trago à minha croniqueta dois autores que escreveram com as palavras do povo aquilo que o povo diz nas estórias que constrói – coisas reais nos romances que foram buriladas com a mestria de quem “…nasce (o escritor) todos os dias, insubmisso e firme, tanto para detectar injustiças, qualquer que seja a sociedade onde viva, como para repudiar o próprio ripanço que se apodera de alguns…” (Alves Redol).
Possivelmente, Aquilino Ribeiro teria assinado por baixo o respigo da frase do prefácio de “Fanga”!
"Reproduzir a linguagem de um rústico, já não digo com fidelidade, mas artificio, redundaria num árduo e incompensável lavor literário. O que se comete foi filtrá-lo, mais na substância do que na forma…” – disse Aquilino, a propósito da novela “O Malhadinhas”, um dos clássicos que se estudava no meu tempo do liceu.
Por aqui se vê como o escritor rebuscava a linguagem do povo em proveito do enredo das suas estórias; outro exemplo: “A Casa Grande de Romarigães”, saboreia-se da paisagem às trutas do rio o encantamento do relato que prende o leitor.Com culturas e vivências diferentes, dir-se-ia que, na escrita, isso seria notório - de facto é, menos nos “retratos” do ambiente rural…
Os dois foram republicanos convictos e tiveram do País uma imagem lúcida no tempo. Aquilino está, diz-se, associado à conjura do regicídio, como agora certa sociedade deu nota e saliência a propósito da trasladação os seus restos mortais para o Panteão Nacional.
Redol, nas suas obras, foi mestre nos subterfúgios da linguagem de modo a “fugir” ao lápis da censura., implacável, como se sabe, nos cortes a direito e de viés sobre tudo e sobre aqueles que não estivam ao jeito do poder instalado.
Lamento que um e outro continuem esquecidos do público leitor, mas um dia destes, quem sabe, talvez renasçam das cinzas como “novos escritores” – foram as cinzas de Aquilino que agora o trouxeram de volta à nossa memória colectiva!
Quanto à lembrança de Alves Redol, a culpa foi do Hugo quando me apresentou a namorada:
-É a Rita, Rita Cara-Linda.
Nem mais: “Constantino guardador de vacas e de sonhos” - lembram-se?
Coincidências…

Flores



Dos bancos da escola sempre fica algo mais do que conhecimento e as memórias estão, por norma, presentes – fazem até questão disso!
Dos clássicos da filosofia, gosto do Hegel. Bem vistas as coisas, hà distância de uns anitos, fui “obrigado” a gostar, graças ao empinanço a que a professora obrigava, coisa aborrecida, é bom de imaginar, sobretudo quando a mente viajava para longe da sala de aulas, se estas coincidiam com o fim de tarde, os corpos a pedir praia, porque o calor africano é, como se sabe, assim para o quentinho…
Hegel, entre outras coisas que me deram volta aos neurónios, baralhou-me as ideias quando, do alto da sua cátedra, foi dizendo que o belo é coisa espiritual de cada indivíduo, nunca um objecto material, etc, etc. A sua obra, “A Estética do belo”, que li de fio a pavio, é fascinante; foi pelas ideias do filósofo que encontrei algumas respostas, como por exemplo, gostar de flores, de dar e receber flores.
Tenho para mim que a flor (seja ela qual for!) é uma dádiva dos deuses para o encantamento do espírito; portanto, Hegel tem razão: o belo é coisa espiritual e cada um entende a beleza segundo os contornos da sua sensibilidade.
Assim sendo (?), a senhora que um dia destes afiançou não gostar de flores, é bem capaz de travar algumas lutas intestinas com o seu (dela) espírito.
Na verdade, fiquei deveras incomodado pela situação que se seguiu: ambos argumentámos, eu em defesa das indefesas criaturas (algumas enfeitam-se de espinhos de modo a cuidarem da sua segurança), a senhora simplesmente… não gosta de flores, e pronto!
O amigo que a acompanhava, socorreu-me com preceito, a ponto da disputa das palavras de ambos a ter feito recuar: -“ bem, não é não gostar, não gosto é que me dêem flores”!
Melhor assim. Ou a opinião final foi consciente, e eu retiro as “lutas intestinas” que deixei acima em letra de forma, ou a senhora foi gentil e cordata, não fosse o diabo tecê-las….
De sensibilidade em sensibilidade, “aparecem os mortos”, já defuntos e enterrados, presenteados com flores como é tradição – flores de todos as matizes e formas.
Os cemitérios ficaram engalanados e não importa se as flores tinham algum significado afectivo, para quem ofertou ou para quem recebeu. Que as campas ficaram decoradas com algum esmero, é verdade…
Eu, que gosto de flores e ainda pertenço ao mundo dos vivos, espero, sinceramente, que os meus amigos continuem fieis aos seus hábitos, sobretudo daqui a uns dias, ainda em Novembro…

Como se fossem adolescentes


A meio da tarde, no bar havia mesas livres; o casal entrou, escolheu uma delas, olharam os dois em redor e, já instalados, pediram que lhe servisse duas bebidas.
Os olhares perderam-se pelas paredes, onde estavam exposta pinturas do Wild de Wildt, Rui Monteiro e Alberto Péssimo; a música ambiente aconchegava o sossego do momento e o tom das suas vozes era suave.
Tocou um telemóvel, a senhora atendeu e falou em francês, expedita e alegre no tom das palavras. Repetiu por três vezes merci, e continuou, veloz, na articulação das palavras – sinal de que, para si, a língua de Nicolas Sarkozy lhe era familiar…
O cavalheiro, entretanto, inquire sobre o espaço: é público, não? Respondo afirmativamente. Sabe -acrescenta - como tem um estilo completamente diferente do habitual, a minha esposa deduziu que fosse um “clube privado”. Em traços largos, explico que o comércio das bebidas era um pretexto para algumas actividades culturais - a exposição de pinturas que tinham à sua frente era um exemplo disso mesmo!
Terminada a conversa, foi a vez da senhora parabenizar os autores das obras expostas e quem tivera o arrojo de colocar de pé o espaço como se apresenta.
Agradeci a generosidade do que foi dito.
Pergunto se estão de férias por estas paragens. Responde a senhora: de férias já estamos há imenso tempo, somos reformados, e viemos de Leiria passar uns dias a esta região, que desconhecíamos em absoluto, pernoitamos na Pousada do Convento do Desagravo e durante o dia damos uns passeios por aí. É muito lindo, tudo aqui à volta, a serra, tudo!
O encantamento do olhar, transmitia alegria, satisfação, prazer, felicidade na forma mais pura – que sei eu desse sublime sentimento?
Sempre de sorriso nos lábios, desenhados num rosto de enorme beleza, disse ao que vieram em concreto, desvendou o segredo, enquanto o marido, talvez um pouco envergonhado, olhava terno e meigo a “jovem” e bonita esposa: faço hoje oitenta anos, e o meu marido presenteou-me com este magnífico passeio.
Oitenta?
Não, não imaginava aquela figura esbelta, meã na altura e aspecto prazenteiro com uma mão cheia de “viçosas primaveras”, muito próxima do centenário que, acrescentei, por certo irá comemorar…
Pedi licença por breves segundos, saí, fui à florista Clara, logo na esquina, comprei uma rosa (que não paguei, por que a Clara conhece de longe o meu “vício” por flores e partilha comigo a sensibilidade do belo, e volta não volta tem destas delicadezas…), e com o meu melhor sorriso ofereci-a à bonita senhora – apenas uma lembrança com que procurei honrar o seu aniversário e o amor do casal
…Fiquei com a sensação de que a rosa vermelha “ganhou vida própria” e eu fiquei a ver o casal de mão dada, rua acima, como se fossem dois adolescentes apaixonados.

“Mondego”, o cão

Trago o Paulo Marques à ribalta da minha despretensiosa croniqueta pelo facto de ser considerado muito justamente figura pública solidária.
Diga-se, em abono da verdade, que o Paulo, “velho” conhecido de mais uma década, coloca a sua paixão por pessoas e bichos no mesmo prato da balança – no outro estão os seus afectos em actos e palavras.
Contaram-me a estória do “Mondego”, rafeiro com nome rio:
“Quando “criança”, o “Mondego” era o enlevo da família de acolhimento, graças à sua permanente disponibilidade para as brincadeiras dos meninos da casa. Então a Rita, traquina, não lhe dava parança um minuto -mas que importava isso se ela era a sua preferida nos jogos de “esconde / esconde” de que tanto gostava! Já o Hugo, irmão mais velho da Rita, não era flor que se cheirasse: puxava-lhe o rabo e pontapeava-o a meio da paródia.
O “Mondego” chorava, como só os cães sabem, e escondia-se fosse onde fosse, logo que o Hugo começava com a “patifaria”, na honesta opinião de qualquer cão.
Apesar disso, o “Mondego” considerava que levava uma bela vida: comida da melhor, banhos, anti pulgas, vacinas – tudo com preceito, até a alcofa onde dormia merecia ar puro diário.
O “Mondego”, naturalmente, cresceu. Diz “ele” que o pior defeito trazido do tempo de “criança” era a irreverência...
Um dia, quando nada o previa, o dono levou-o a um passeio, serra acima, e enquanto se entretinha com os cheiros daquele mundo estranho, levou longe demais a correria, a ponto de se perder atrás de uma moita. Ergueu as orelhas e aguçou o olhar em busca do dono... concluiu que tinha sido abandonado à sorte do destino incerto.
Depois de horas a fio, sem rumo (ou foram dias?), apercebeu-se do barulho familiar dos automóveis que iam e vinham em velocidade estonteante.
Devagar, cansado, foi até à berma daquela estrada que nunca tinha visto e por lá ficou, indeciso:
- Atravesso para o outro lado, ou volto para trás? - pensava .
Todo ele tremia – o instinto dizia-lhe para ser cuidadoso.
De repente, um dos muitos automóveis, em marcha lenta, acendeu uma luzinha, como se lhe piscasse o olho, e parou mesmo ao seu lado.
Resoluto, o Paulo Marques - conheceu-lhe o nome mais tarde – pegou em si, com jeito e palavras mansas, e colocou-o no banco de trás.
A viagem foi longa. “Conversaram”, ele com latidos e abanadelas de rabo que, tinha a certeza, o seu protector entendia, e este a querer saber coisas: de onde vinha e para onde ia – coisas que, para um cão como ele, agora em segurança, eram desnecessárias…
O Paulo, disse-o na roda de amigos, “limitou-se a alterar a vida e o futuro do miúdo”, sem pensar nas consequências: espaço para alojar o “Mondego” e a “zanga” da mãe:
- Mais um, Paulo?
O pai, homem de outros cuidados, atenções e paciências, por certo conformou-se com o novo hóspede do canil e “inventou” um lugar digno e acolhedor, de modo a que o “Mondego” se sentisse em casa...
- Bem-vindo – disse o Paulo.
... Feita a “chamada” do recolher, responderam oitenta e três utentes, incluindo o “Mondego”!

Caloiros “à solta”


Não perco pitada das estórias contadas em jeito de crónica pelo escritor Rui Zink, daí que procure alguns dos seus subsídios para meios sorrisos eloquentes, como o excerto deste texto: “Dinossauros excelentíssimos”, que pode ser lido nas suas crónicas benditas: “Luto pela felicidade dos portugueses”.
“…Ao almoço, no restaurante:
- O que recomenda?
- O pargo está uma delícia, e além disso é licenciado em Económicas
- Hum… licenciado em Económicas…
- Mas olhe que está uma categoria…
- Eu sei, mas queria qualquer coisa mais substancial. Não tem nada com mestrado?
- Peixes não, mas tenho umas costeletas de vitela que estão a tirar o doutoramento em Oxford. Fritinhas e servidas com batatas da Católica ficam uma maravilha”.
O diálogo saboroso bem podia fazer parte de um Sketch a que os novos caloiros estariam sujeitos, se a Praxe académica tivesse outros contornos de entretenimento puro, o que não invalida a comicidade dos parodiantes em situações inventadas, na hora, pelos doutores.
Graças aos noviços da ESTGOH -Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Oliveira do Hospital - fiquei a saber que o balcão do bar onde alguns estudantes foram vítimas da Praxe, mede “quase” oitenta paus de fósforos! Tenho as minhas dúvidas, apesar dos encarregados, na proporção de três para um (trabalhador), garantirem a autenticidade dos cinco centímetros de cada amorfo.
O cepticismo resulta do facto de entre eles, apesar da sobriedade com que se apresentaram ao trabalho, não existir consenso quanto às metades que faltam ou sobram a cada ladrilho: que fazer aos sobejos dos ditos? Ou será que são pequenos em demasia?
Em defesa da lógica, o doutor Carlos Maia “Fiúza”, filósofo de ocasião, apontou uma garrafa de Porto e do alto da sua insigne sabedoria, discursa:
- Isto é simples: para mim, a garrafa está meia vazia; aqui para o Ginja, meia cheia!
O Ginja II, que tem jeito para o canto, apresentava-se com um estilo de penteado com tendências futuristas, dava nas vistas - pelo menos enquanto o barbeiro não acertou as escadinhas laterais, entre as orelhas e o cocuruto - como se imagina, e concordou com o mestre, não fosse este ordenar punição maior pela irreverência do contraditório.
A tertúlia compôs-se, segundo o grau e qualidade de quem ia chegando – pessoas ilustres e ilustradas pelo traje negro sem pergaminhos, por ora, a saber: doutores Hélder Pinto, Romeo (com o, sim senhor …) Vieira “Laurent Robert”, Bruno Gomes, e Carlos Maia ”Fiúza”, os engenheiros Santarém, “o campino”, Álvaro Ferreira,”o músico”, a que se juntaram os afilhados Mi Gusto, Lloyd e Roger. Faltaram à chamada o doutor João Paiva, “o teórico da bola”, possivelmente a congeminar nova táctica que possibilite vitórias ao seu clube, e o engenheiro João Bagorro, “o alentejano”, talvez a meio da única “imperial” do dia!
A coberto dos cuidados paternos, alguns ficaram no anonimato, como convém.
Para o Ludovic Costa, “o francês”, 23 anos de idade, licenciado em Económicas, voltar a ser caloiro em Engenharia Civil - “é obra”!
A ESTGOH começa a ser aliciante para a classe estudantil, daí que a Praxe se instale com cânones próprios - falta eleger o Dux Veteranorum!!
Perante “malta” de tal jaez, espera-se, em Oliveira do Hospital, um ano lectivo recheado de bons costumes académicos.
Quanto às aulas, há tempo, “o ano só agora começou” – palavra de caloiro!

Vento na Terra do Nunca

Longe vão os tempos das grandes descobertas marítimas; bem andaram as majestades reais com os empenhos e engenhos guerreiros que se conhecem, a par de outros interesses profanos e religiosos.
Das riquezas de que se sabia, vieram cheios os porões das naus e caravelas; das outras (riquezas), a colheita justificou os martírios de marinheiros e soldados, Dominicanos, Jesuítas e outra gente de Deus.
Mais bélicos, os galeões, ao sabor de ventos e correntes marítimas, faziam da força bruta a sua raça indomável, mas nem por isso tinham melhor sorte, e a sua altivez de contratorpedeiros de pouco lhes valia, perante as forças da Natureza, e iam ao fundo com a mesma desgraça dos seus congéneres cargueiros de bens e pessoas;
O panorama desses tempos, no arrojo do Homem, tem hossanas de poetas. É por via da escrita que conhecemos os feitos de glória com que se cobriam os viajantes nas suas lutas contra hábitos e costumes de outras origens - nas guerras com os gentios, “falavam” mais alto e mais forte as “vozes” das escopetas e fuzis do homem branco.
Houvesse ou não ventos de feição, os navios sempre se fizeram ao largo.
O mar tem as suas marés, e as ondas, ainda que encapeladas, não eram obstáculo para quem se dispunha a entrar na História pela associação da inteligência, coragem, esperteza, e sabedoria empírica ou não.
Os tempos mudaram, as pessoas também – só o mar e o vento continuam sendo mar e vento, proporcionando ao Homem as mesmas benesses de que nos continuamos a servir “gratuitamente”e em maior escala, porque estamos cada vez mais “espertos”e de inteligência refinada pelo conhecimento cientifico que espanta - tal a evolução das descobertas - como outrora…
Da água do mar, retira-se o sal e serve-se o líquido a contento das sementes que germinam na terra. Das marés, aproveitou-se o vai e vem das águas para gerar energia.
O vento é o ar em movimento que soprou as velas dos barcos de outros séculos e, agora, faz mover gigantescas hélices que, por sua vez, geram energia.
Aos povos que têm a desdita de viver longe dos oceanos, fica-lhes reservada a felicidade de subir mais alto e olhar o mundo lá de cima, com o vento a enrolar-se mansamente à nossa volta, ou asfixiando-nos, como uma anaconda.
Infelizmente, a região do “meu” Concelho é quase plana, sem montes que mereçam a honra de montanhas, não temos altura nem estatura para tocar as nuvens, por isso, o vento que sopra sei lá de que banda, não traz a força suficiente para fazer rodar de forma constante aquelas três enormes pás que se vão desenhando um pouco pelas serras aqui à volta – do Açor à Estrela.
Ventos sem qualidade, pelo que li, é o que temos cá por baixo, nos arrabaldes, logo, a riqueza de ventos de feição não nos calhou em sorte – conclusão simples e sherlockiana.
Sem a possibilidade de, pelo menos, um parque eólico que nos honre a estima, envaideça o ego e alimente o erário público, longe do mar e das marés, sem petróleo ou gás no subsolo (que se saiba!), só resta a barragem da mini - hídrica de Avô para nos tirar da pobreza franciscana, no que à energia eléctrica diz respeito…
É pouco.
Perante factos, vou deixar de dizer aos amigos de longe que vivo na serra do Peter Pan e afiançar-lhe que moro na Terra do Nunca, onde o vento pouco ruge.
O diabrete Capitão Gancho, esse continua por cá, mauzinho, arrogante, inconveniente e…pirata!
Quanto ao Sininho…plimmmmmm!

Nem padre nem doutor



Passaram anos sobre o dia em que fui desterrado para um primeiro andar de uma casa sita na rua Dr. João Jacinto, em Coimbra, com a finalidade de, um dia, chegar a doutor, se para tal houvesse sabedoria.
A nobreza da intenção da família possivelmente foi abençoada pelo arcipreste Januário, pastor das almas da freguesia; porém, nem ele nem os meus tiveram o cuidado de conhecer os meus anseios -coisa pouca, devo acrescentar: queria ser padre para entoar a imperceptível ladainha da missa ao domingo e usar uma “saia” negra como o prior!
Tiraram-me daí o sentido com o argumento de que os padres não podiam casar e então, para não ter de inventar sobrinhas ou primas afastadas, o melhor era ser doutor de qualquer coisa e depois se veria com quem partilhar o aconchego da família oficial, que havia de ter…
Coimbra e o Liceu D. João III seriam, pois, o destino da criança que eu era. E lá fui, com medos e vergonhas a fazerem mossa na minha imatura e periclitante personalidade. Fui, mas regressei no fim do ano lectivo, vergado a um chumbo de “noves”, escrito a vermelho na pauta.
No ano seguinte, havia duas opções: o colégio de Oliveira do Hospital, afamado, ou o de Arganil, que não lhe ficava atrás nos resultados académicos. Escolheram por mim: Arganil –sempre havia carreira de manhã e à tarde, e ficava sob a alçada da família, que continuava a insistir no “doutor de qualquer coisa” - padre é que nem pensar!
As voltas que dei na vida afastaram-me, definitivamente, de todas as vontades e desejos.
Mais tarde, os ares de Abril trouxeram-me de regresso “à terra”, deixando para trás, contrariado, um pedaço de África, como se tivesse arrancado à força o sonho de…ser doutor – ou padre! - e voltei a Oliveira do Hospital a tempo de conhecer gente que, se a roda da fortuna tivesse girado noutro sentido, bem poderiam ter sido meus condiscípulos no Colégio Brás Garcia de Mascarenhas. Agora ouço relatos de peripécias inarráveis em letra de forma, conheço estórias de sucesso, e sei da saudade com que alguns desses amigos recordam os tempos do “Brás”.
Naturalmente, graças à dedicação dos professores e ao rigor do ensino, o mítico Colégio é referência nacional de um tempo em que para se “ser doutor no liceu” não estava ao alcance de todas as bolsas e Coimbra, depois do tirocínio em Oliveira, com aproveitamento académico, era o melhor destino para se chegar ao almejado canudo.
Algum do espólio do “Brás” está, a partir de agora, reunido num documento único, posto à disposição de centenas de antigos alunos que, por certo, vão gostar de recuar nos anos ao passar o olhar pelas duzentas e noventa páginas do livro “Do Colégio Brás Garcia de Mascarenhas ao Externato de Oliveira do Hospital 1932 – 1973” , mesmo que não tenham chegado a “doutores”.
…Pena será se a obra não estiver à disposição dos leitores da Biblioteca Municipal, à semelhança de outras obras com o mesmo carácter histórico.
Por mim, nem padre nem doutor de qualquer coisa – continuo aprendiz pela “leitura do conhecimento” de mestres como o João Soares, o melhor contador de estórias que alguma vez conheci.